O GRANDE
DESCONHECIDO
Sem a fé não é possível a graça do Espírito Santo.
O Evangelho narra que, depois de ter feito muitos milagres em várias partes de Israel, Jesus retornou à cidade de Nazaré onde havia sido criado. Seus amigos e conhecidos, longe de o receberem com amor e respeito, em vez disso se escandalizaram, percebendo que Jesus havia convivido longos anos com eles aparentemente sem ter realizado nenhum prodígio.
Eles queriam ver Jesus fazer tudo aquilo que tinham ouvido ele ter feito em outros lugares: "De onde lhe vem esta sabedoria e estes milagres?", perguntavam eles. "Porventura não é este o filho do carpinteiro? De onde vem pois a este todas estas coisas?" Mas, apesar disto, Jesus não fêz ali muitos milagres, e o Evangelho de Mateus assim se expressa a este respeito: "Não fêz ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles". (Mt. 13, 58)
No Evangelho de Marcos, o ocorrido é narrado de uma forma ainda mais contundente: "Jesus não podia fazer ali milagre nenhum; apenas curou alguns poucos enfermos, impondo lhes as mãos, admirando-se da incredulidade deles". (Mc. 6, 4-5)
À primeira vista estas passagens podem parecer significar que, sem a fé dos doentes, Cristo seria incapaz de realizar qualquer milagre, mesmo que o quisesse, e que, portanto, a verdadeira causa destes prodígios não seria o próprio Cristo, mas a fé dos que os recebiam.
Esta interpretação, porém, se torna manifestamente inaceitável quando passamos a examinar a história da Igreja, na qual encontramos os exemplos dos homens que se decidiram a seguir os passos do Mestre.
Encontramos, assim, na história de São Bernardo, um contemporâneo de Hugo de São Vítor, o seguinte relato: "Quando Bernardo pregava contra a heresia na região de Tolouse, um dia, acabado o sermão, aquela boa gente lhe trouxe uma grande quantidade de pães para que os abençoasse. Ao fazê-lo, Bernardo lhes disse: `Vereis agora, meus filhos, se é verdade o que eu vos ensino e falso o que vos ensinam e vos querem persuadir os vossos contrários; dou-vos este sinal, o de que todos os enfermos que comerem este pão recobrarão sua saúde'.
Ora, estava ali presente o bispo de Chartres e, parecendo-lhe que aquela afirmação de São Bernardo era muito genérica e perigosa, quis modificá-la. Tomando a palavra, acrescentou: `Vós deveis entender que estas palavras do abade Bernardo significam que recobrarão saúde aqueles que comerem este pão com fé'.
Mas a isto replicou Bernardo: `Não, senhor bispo. Não foi isto que eu disse. Disse apenas o que as minhas palavras soaram, isto é, que todos aqueles que provarem deste pão recobrarão a saúde, (com fé ou sem fé), para que se possa entender com isto que estamos aqui como legítimos e verdadeiros embaixadores de Deus'.
Como Bernardo o disse, assim o foi. Todos aqueles que comeram daquele pão recobraram a saúde, sem exceção nenhuma. A fama daquele milagre voou imediatamente por toda aquela província e foi muito útil para extinguir a heresia e despertar e acender os corações daqueles povos à devoção, que concorriam de todas as partes para ver a Bernardo, em tão grande número que lhe foi necessário para fugir a esta honra mudar o caminho de Satat, onde se tinha dado o milagre, para a cidade de Tolouse". (Pedro de Ribadaneira, Vida de S.Bernardo, C. 9 Vita Prima S. Bernardi L. 3, C. 6, n. 18)
Vemos, assim, nesta passagem da vida de São Bernardo, que Deus havia lhe concedido a cura de todos os enfermos que comessem o pão que ele havia abençoado, quer eles cressem, quer não cressem. Jesus, porém, não era menos do que S. Bernardo. Se isto, portanto, foi possível de ser concedido a S. Bernardo, poderia ter sido também realizado pelo Cristo.
Daqui se conclui que ao dizer que Jesus passou por Nazaré e não pôde realizar milagres porque os homens não criam, o texto sagrado não pôde ter entendido que Cristo não os fêz porque teria sido incapaz de fazê-lo ainda que o quisesse, mas porque, no plano da providência divina, os milagres de Jesus eram um símbolo da regeneração espiritual que a graça do Espírito Santo produz na alma dos homens que vivem da fé. Os milagres que Jesus fazia eram sinais externos de algo muito maior que Deus prepara para aqueles que crêem; e era para não destruir o significado destes sinais que Jesus não podia realizar estes milagres onde as pessoas não crêssem.
Primeira conclusão.
De tudo quanto dissemos deduz-se a importância da virtude da fé para o desenvolvimento da vida cristã: "Sem fé", diz a Epístola aos Hebreus, "não é possível agradar a Deus", Heb. 11, 6 pois é pela fé que se recebe a graça do Espírito Santo, cujo princípio se manifesta pelo dom do temor do Senhor, através do qual nos é dado do alto a força necessária para evitar o pecado, cumprir os mandamentos e iniciar o trabalho de santificação. Aqueles que desejam alcançar o único objetivo importante desta vida e também a vontade de Deus para todos os homens, a santidade, assim como auxiliar o próximo a alcançá-la, devem, portanto, começar pela virtude da fé.
Vimos como as Sagradas Escrituras e, em particular, Jesus Cristo e o Apóstolo São Paulo, nos ensinam a importância de se procurar adquirir a fé e de fazê-la crescer, até que, no dizer de Jesus, de uma pequena semente se torne uma grande árvore.
Jesus, em uma passagem do Evangelho de Mateus, compara a fé a um grão de mostrada (Mt. 17, 20); mas em outra, volta a comparar o Reino dos Céus, que se inicia em nós pela fé, a este mesmo grão de mostarda. Ao fazer esta segunda comparação, Jesus mostra que a fé, pela qual se inicia o Reino de Deus, no início parece ser uma coisa insignificante, pequeníssima como a menor de todas as sementes, um quase nada que aparentemente não manifesta mais valor ou mais conseqüências do que as menores coisas da vida cotidiana, como uma pequena palavra de consolo ou a simples formalidade de um cumprimento, cuja existência não alteraria o curso dos eventos humanos mais do que a sua não existência.
Uma semente de mostarda, tão pequena que não faria diferença até no cardápio de um passarinho. Mas esta fé, ensina Jesus, esconde em sua pequenez a mesma grandiosidade da sabedoria dAquele que criou a semente de mostarda, e se o homem souber como plantá-la e cultivá-la, torna-se a maior de todas as árvores, em nada mais semelhante com aquela semente que havia sido a sua primeira origem: "O Reino dos Céus", diz Jesus, "é semelhante a um grão de mostarda. É, na verdade, a menor de todas as hortaliças, mas torna-se uma árvore capaz de abrigar as aves do céu que vem pousar em seus ramos". (Mt. 13, 31-32)
Para que possamos, portanto, alcançar a plena estatura dos filhos de Deus, devemos, segundo o ensinamento de Jesus, fazer com que a fé em nós se torne uma grande árvore, capaz de "abrigar as aves do céu que vem pousar em seus ramos".
Mas para isto deveremos examinar primeiro com mais precisão o que é a virtude da fé de que já falamos, como ela se adquire e qual o seu papel no processo da santificação do homem. É isto que pretendemos fazer no restante deste livro e no próximo.