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O dom de temor de Deus

 

Os dons do espírito santo são todos perfeitíssimos; porém, sem dúvida alguma, existe entre eles uma hierarquia que determina diferentes graus de excelência e perfeição. Esta escala hierárquica começa na base com o dom de temor e acaba no topo com o dom de sabedoria, que é o mais sublime e excelente de todos. Vamos, pois, começar com o estudo do dom de temor.

 

1. É possível que Deus seja temido?

 

O Doutor Angélico, São Tomás de Aquino, começa a longa e magnífica questão que dedica em sua obra fundamental ao dom de temor de Deus, perguntando se Deus pode ser temido.

 

À primeira vista parece, efetivamente, que Deus não pode e nem deve ser temido. E isso em virtude de dois argumentos muito claros e simples:

 

a) O objeto do temor é um mal futuro que pode nos sobrevir. Mas de Deus, que é a suma bondade, não pode nos sobrevir mal algum. Logo, não pode e nem deve ser temido.

 

b) O temor se opõe à esperança, como ensinam os filósofos. Porém temos suma esperança em Deus. Logo, não podemos temer-lhe e ter esperança ao mesmo tempo.

 

Apesar destas dificuldades, é coisa clara e evidente que Deus pode e deve ser temido retamente. Não é possível temer a Deus enquanto bem supremo e futura bem-aventurança do homem; neste sentido é objeto unicamente de amor e desejo. Porém Deus é também infinitamente justo, que odeia e castiga o pecado do homem; e, neste sentido, pode e deve ser temido, pois pode infringir-nos um mal como castigo de nossas culpas.

 

À primeira dificuldade se responde que a culpa do pecado não vem de Deus como seu autor, mas de nós mesmos, já que nos apartamos d’Ele. O castigo ou pena desse pecado vem de Deus, porque é uma pena justa e, por isso mesmo, um bem. Porém, que Deus nos inflija justamente uma pena ocorre primordialmente por culpa de nossos pecados, segundo lemos no livro da Sabedoria: “Deus não fez a morte (...) mas os ímpios a chamam com suas obras e palavras”. ( Sb 1, 13-16)

 

A segunda dificuldade se desvanece dizendo que em Deus deve-se considerar a justiça, pela qual castiga aos pecadores, e a misericórdia, pela qual nos livra. Com a consideração de sua justiça se suscita em nós o temor, e com a consideração de sua misericórdia nos invade a esperança. Deste modo, sob diversos aspectos, Deus é objeto de esperança e de temor.

 

Deve-se ter em conta, no entanto, que há muitas classes de temor, e nem todas são perfeitas ou virtuosas. Vamos especificá-lo imediatamente.

 

2. Diferentes classes de temor Podem ser distinguidas quatro classes de temor, muito distintas entre si:

 

1) Temor Mundano. – É aquele que não vacila em ofender a Deus para evitar um mal temporal (p.ex., apostatando da fé para evitar tormentos do tirano que o persegue). É evidente que este temor não somente não é virtuoso, como também constitui um grande pecado, posto que se prefere um bem criado (a própria vida, neste caso) ao amor do bem incriado, que é o próprio Deus. Por isso disse Cristo no Evangelho: “Aquele que tentar salvar a sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder, por minha causa, reencontrá-la-á”.(Mt, 10, 39.) A este gênero de temor mundano se reduzem, em maior ou menor grau, os pecados que se cometem por respeito humano. Bem longe desta classe de temor mundano estava Santa Teresa de Jesus quando dizia que preferia ser antes “ingratíssima contra o mundo todo” do que ofender em um só ponto a Deus.

 

2) Temor servil. – É próprio do servo que serve a seu senhor por medo do castigo que possa lhe sobrevir ao não servir-lhe. Deve-se distinguir duas modalidades nesta classe de temor:

 

a) Se o medo do castigo constitui a única razão para evitar o pecado, então este medo em si constitui um verdadeiro pecado, posto que ao pecador não importa em nada a ofensa a Deus, senão unicamente pelo temor do castigo (p.ex., aquele que dissesse: “Cometeria o pecado se não houvesse inferno”). É mal e pecaminoso, porque embora evita a materialidade do pecado, de fato incorre formalmente nele pelo afeto que lhe professa; não lhe importaria em nada a ofensa a Deus se esta não levasse consigo a pena. Neste sentido se chama temor servilmente servil e é sempre mal e pecaminoso.

 

b) Se o medo do castigo não é a causa única e nem próxima, mas acompanha à causa primeira e principal (que é o temor de ofender a Deus), é bom e honesto, porque, no fim das contas, rechaça o pecado principalmente porque é ofensa de Deus e, ademais, porque nos pode castigar se o cometemos. É a chamada dor de atrição, que a igreja declara boa e honesta contra a doutrina dos protestantes e jansenistas. Se chama também temor simplesmente servil.

 

3) Temor filial imperfeito. – É aquele temor que evita o pecado porque nos separaria de Deus, a quem amamos. É o temor próprio do filho que ama a seu pai e não quer se separar dele. Já se compreende que esta classe de temor é muito boa e honesta. Mas ainda não é perfeita, posto que ainda leva em conta o castigo próprio que lhe sobreviria: a separação do Pai e, por tanto, do céu. Ainda é muito superior ao temor simplesmente servil, posto que o castigo que teme provém do amor que professa a seu pai, e não do medo a outra classe de penas. É o chamado temor inicial, que ocupa um lugar intermediário entre o servil e o propriamente filial, como vamos ver.

 

4) Temor filial perfeito.É próprio do filho amoroso, pendente das ordens do pai, a quem não desobedecerá unicamente para não lhe desagradar, mesmo sem ameaça alguma de pena de castigo. É o temor perfeitíssimo daquele que sabe dizer com toda verdade: “Ainda que não houvesse céu, eu te amaria, ainda que não houvesse inferno, te temeria”.

 

Pois bem, qual desses temores é dom do Espírito Santo? É evidente que nem o mundano e nem o servil podem sê-lo.

 

Não o mundano porque é pecaminoso: teme mais perder ao mundo do que a Deus, a quem abandona pelo mundo. Nem tampouco o servil, porque, ainda que, em si mesmo, não seja mal, pode se dar também no pecador mediante uma graça atual que lhe mova à dor de atrição pelo temor da pena. Este temor é já uma graça de Deus que lhe move ao arrependimento, mas todavia não está conectado com a caridade e, por conseguinte, nem com os dons do Espírito Santo.

 

Segundo São Tomás, só o amor filial perfeito entra no dom de temor, porque se funda diretamente na caridade e reverência a Deus como Pai. Porém, como o temor filial imperfeito (temor inicial) não difere substancialmente do filial perfeito, também o imperfeito passa a formar parte do dom de temor, embora só em suas manifestações incipientes ou imperfeitas. À medida que cresce a caridade, vai-se purificando o temor inicial, perdendo sua modalidade servil, que ainda teme a pena, para fixar-se unicamente na culpa enquanto ofensa de Deus.

 

Com estas noções já podemos abordar a natureza íntima do dom de temor.

 

3. Natureza do dom de temor

 

O dom de temor é um dos mais complexos e difíceis de precisar com exatidão e rigor teológico. No que possui de mais íntimo e positivo, poderíamos dar dele a seguinte definição:

 

O dom de temor é um hábito sobrenatural pelo qual o justo, sob o instinto do Espírito Santo e dominado por um sentimento reverencial para com a majestade de Deus, adquire docilidade especial para apartar-se do pecado e submeter-se totalmente à divina vontade.

 

No momento, basta esta noção geral. Ao precisar mais abaixo as principais virtudes com as que se relaciona e os admiráveis efeitos que produz na alma a atuação do dom de temor, acabaremos de perfilar a natureza íntima deste admirável dom.

 

4. Seu modo deiforme

 

Deus é a causa suprema e exemplar de todos os dons sobrenaturais que recebemos de sua divina liberalidade. Mas parece que com relação ao dom de temor não é possível encontrar n’Ele nenhuma sorte de exemplaridade, já que em Deus é absolutamente impossível a existência de qualquer classe de temor.

 

A exemplaridade divina – escreve a este propósito o padre Philipon –, que salta à vista em todos os demais dons do Espírito Santo, é difícil de perceber no dom de temor.

 

Compreende-se sem esforço que os dons intelectuais tenham por protótipo a inteligência, a ciência, a sabedoria e o conselho de Deus. O dom de piedade é como uma imitação da glorificação que Deus encontra em si mesmo, em seu Verbo. E o dom de fortaleza, como um reflexo da onipotência e imutabilidade divinas. Mas como descobrir em Deus um modelo do dom de temor?

 

Sim, ele existe: seu afastamento de todo mal, ou seja, sua santidade infinita, que comunica aos homens e aos anjos, que “tremem” diante d’Ele; algo de sua pureza divina, inacessível à mais mínima mácula e dotada de um poder soberanamente eficaz contra todas as formas do mal. O Espírito de Deus é um Espírito de temor, assim como é de amor, de inteligência, de ciência, de sabedoria, de conselho, de fortaleza e de piedade. Em sua ação pessoal no mais íntimo da alma, o Espírito do Pai e do Filho transmite algo da infinita detestação do pecado que existe no próprio Deus, e de sua vontade de se opor ao “mal de culpa”, e de sua ordenação do “mal de pena” por sua vingadora justiça para sua maior glória e para restituir a ordem no universo.

 

Um sentimento análogo é participado, no fundo das almas, sob a influência direta do Espírito de temor: antes de mais nada, uma detestação enérgica do pecado, ditada pela caridade; ademais, um sentimento de reverência para com a infinita grandeza daquele cuja soberana bondade merece ser o fim supremo de cada um de nossos atos, sem o menor desvio egoísta em direção ao pecado.

 

O modo deiforme do Espírito de temor se mede pela santidade de Deus.

 

5. Virtudes relacionadas

 

Os dons do Espírito Santo se relacionam intimamente entre si e com todo o conjunto das virtudes cristãs, já que ambos são inseparáveis da caridade sobrenatural, que é a forma de todas as virtudes e dons, a alma de todos eles. No entanto, cada um dos dons se relaciona especialmente com alguma ou algumas virtudes infusas, às quais se encarrega de aperfeiçoar por sua grande afinidade com elas. O dom de temor se relaciona de forma muito especial com a esperança, a temperança, a religião e a humildade.

 

Vejamos com mais detalhes

 

a) A esperança – O homem sente a propensão natural de amar a si próprio desordenadamente, a presumir que algo é, algo vale e algo pode a fim de conseguir sua bem-aventurança. É o pecado de presunção, contrário por excesso à virtude da esperança. É unicamente a esperança que arrancará pela raiz o dom de temor ao nos dar um sentimento sobrenatural e vivíssimo de nossa radical impotência ante Deus, que trará como consequência o nosso apoio unicamente na onipotência auxiliadora de Deus, que é, cabalmente, o motivo formal da esperança cristã. Sem a atuação intensa do dom de temor, esta última nunca chegará a ser totalmente perfeita.

 

“A esperança – escreve a este propósito o padre Philipon – induz à alma humana, consciente de sua fragilidade e de sua miséria, a refugiar-se em Deus, cuja onipotência misericordiosa é a única que pode liberá-la de todo mal. Sendo assim, o espírito de temor e a esperança teologal, o sentido de nossa debilidade e o da onipotência de Deus, prestam-se apoio mútuo em nós. O dom de temor se converte em um dos mais preciosos auxiliares da esperança cristã. Quanto mais débil e miserável se sente o fiel, quanto mais inclinado a cair, mais se refugia em Deus, como uma criança carregada no colo de seu pai.

 

b) A temperança. – O dom de temor visa principalmente a Deus, fazendo-nos evitar cuidadosamente tudo quanto possa ofender-lhe e, nesse sentido, aperfeiçoa a virtude da esperança, como já dissemos. Porém, secundariamente, pode se direcionar a qualquer outra coisa da qual o homem se aparte para evitar a ofensa de Deus. E nesse sentido corresponde ao dom de temor corrigir a tendência mais desordenada experimentada pelo homem – a dos prazeres carnais -, reprimindo-a mediante o temor divino, ajudando e reforçando a virtude da temperança, que é a encarregada de moderar aquela tendência desordenada. Sem o reforço do dom de temor, a virtude da temperança seria impotente para vencer sempre e em todas as partes o ímpeto das paixões desordenadas.

 

c) A religião. – Como é sabido, a religião é a virtude encarregada de regular o culto devido à majestade de Deus. Quando esta virtude é aperfeiçoada pelo dom de temor, alcança seu expoente máximo e plena perfeição. O culto à divindade se enche desse temor reverencial que experimentam os próprios anjos ante a majestade de Deus: tremunt potestates; desse temor santo que se traduz em profunda adoração ante a perfeição infinita de Deus: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus dos exércitos”.( Is 6, 3.)

 

O modelo supremo desta reverência ante a grandeza e majestade de Deus é o próprio Cristo. Se nos fosse dado a contemplar a humanidade de Jesus, a veríamos subjugada de reverência ante o Verbo de Deus, ao qual estava unida hipostaticamente, ou seja, formando uma só pessoa divina com Ele.

 

Esta é a reverência que coloca o Espírito Santo em nossas almas através do dom de temor. Ele cuida de fomentá-la em nós, mas moderando-a e fusionando-a com o dom de piedade, que põe em nossa alma um sentimento de amor e de filial ternura, fruto de nossa adoção divina, que nos permite chamar a Deus de Pai nosso.

 

d) A humildade. – O contraste infinito entre a grandeza e santidade de Deus e nossa incrível pequenez e miséria é o fundamento e a raiz da humildade cristã; mas só o dom de temor, atuando intensamente na alma, leva a humildade à perfeição sublime que admiramos nos santos. Escutemos a um teólogo contemporâneo explicando esta doutrina:

 

O homem ama, antes de tudo, a grandeza, dilatar-se e alargar-se mais do que lhe corresponde, o que constitui o orgulho, a soberba; mas a humildade lhe reduz a seus devidos limites para que não pretenda ser mais do que é, segundo a regra da razão. E sobre isso vem atuar o dom de temor, submergindo a alma no abismo de seu nada diante da totalidade de Deus, nas profundezas de sua miséria ante a infinita justiça e majestade divinas. E assim, a alma penetrada por este dom, como é nada diante de Deus e não tem de sua parte mais do que sua miséria e seu pecado, não deseja por si mesma grandeza nem glória alguma fora de Deus, nem se julga merecedora de outra coisa além de desprezo e castigo. Só assim pode a humildade chegar a sua perfeição: e tal era a humildade que vemos nos santos, com um desprezo absoluto de si mesmos.

 

Ao lado destas quatro virtudes fundamentais, o dom de temor faz sentir também sua influência sobre várias outras, relacionadas de algum modo com aquelas. Não há nenhuma virtude que, através de alguma teologal ou cardeal, deixe de receber a influência de algum dom. E assim, através da temperança, o dom de temor atua sobre a castidade, levando-a até a delicadeza mais refinada; sobre a mansidão, reprimindo totalmente a ira desordenada; sobre a modéstia, suprimindo em absoluto qualquer movimento desordenado interior ou exterior; e combate as paixões que, juntamente com a vanglória, são filhas da soberba: a jactância, a presunção, a hipocrisia, a pertinácia, a discórdia, a réplica irada e a desobediência.

 

6. Efeitos do dom de temor nas almas

 

São inestimáveis os efeitos santificadores que a atuação do dom de temor produz nas almas, apesar de ser o último e menos perfeito de todos. Eis aqui os principais:

 

1) Um vivo sentimento da grandeza e majestade de Deus, que as submerge em uma adoração profunda, cheia de reverência e humildade. – É o efeito mais característico do dom de temor, que se desprende de sua própria definição. A alma submetida a sua ação se sente transportada com força irresistível ante a grandeza e majestade de Deus, que faz tremer aos próprios anjos: tremunt potestates. Diante dessa infinita majestade se sente nada e menos que nada, posto que é um nada pecador. E se apodera dela um sentimento tão forte e penetrante de reverência, submissão e acatamento, que gostaria de desaparecer e padecer mil mortes por Deus.

 

É então quando a humildade chega ao seu cume. Sentem desejos imensos de “padecer e ser desprezado por Deus” (São João da Cruz). Não se lhes ocorre ter o mais ligeiro pensamento de vaidade ou presunção. Veem tão claramente sua miséria, que, quando lhes elogiam, parece-lhes que zombam deles (Cura d’Ars). São Domingos de Gusmão se colocava de joelhos na entrada dos povoados, pedindo a Deus que não castigasse a aquele local onde iria entrar tão grande pecador. Chegados a estas alturas, há um procedimento infalível para atrair a simpatia e amizade destes servos de Deus: injuriar-lhes e encher-lhes de impropérios (Santa Teresa de Jesus).

 

Esse respeito e reverência ante a majestade de Deus se manifesta também em todas as coisas que de algum modo dizem respeito a Ele. A igreja ou oratório, o sacerdote, os vasos sagrados, as imagens dos santos..., todos os veem e tratam com grandíssimo respeito e veneração. O dom de piedade produz também efeitos semelhantes; mas desde outro ponto de vista, como veremos no lugar correspondente.

 

Esse é o aspecto do dom de temor que continuará eternamente no céu. Ali não será possível – dada a absoluta impecabilidade dos bemaventurados – o temor da ofensa de Deus; mas permanecerá eternamente, aperfeiçoada e depurada, a reverência e acatamento ante a infinita grandeza e majestade de Deus, que encherá de estupor a inteligência e o coração dos santos.

 

2) Um grande horror ao pecado e uma vivíssima contrição por tê-lo cometido. – Iluminada sua fé pelos resplendores dos dons de entendimento e ciência e submetida a esperança à ação do dom de temor, que a enfrenta diretamente com a majestade divina, a alma compreende como nunca a malícia de certo modo infinita que encerra qualquer ofensa a Deus, por insignificante que pareça. O Espírito Santo, que quer purificar mais e mais a alma para a divina união, a submete ao dom de temor, que lhe faz experimentar uma espécie de antecipação do rigor inexorável com que a justiça divina, ofendida pelo pecado, há de castigá-la na outra vida, se não fizer nesta a devida penitência. A pobre alma sente angustias morais, que alcançam sua máxima intensidade na horrenda noite do espírito, antes de alcançar o cimo supremo da perfeição cristã. Lhe parece que está irremediavelmente condenada e que já não tem nada que esperar. Em realidade, é então quando a esperança chega a um grau incrível de heroísmo, pois a alma chega a esperar “contra toda esperança”, como Abraão, (Rm 4, 18) e a lançar o grito sublime de Jó: “Se ele me mata, nada mais tenho a esperar, e assim mesmo defenderei minha causa diante dele”. (Jó 13, 15.)

 

O horror que experimentam estas almas ante o pecado é tão grande, que São Luis Gonzaga caiu desmaiado aos pés do confessor ao acusar-se de duas faltas veniais muito leves. Santo Afonso de Ligório experimentou semelhante fenômeno ao ouvir pronunciar uma blasfêmia. Santa Teresa de Jesus escreve que “não podia haver morte mais dura para mim, do que pensar se tinha ofendido a Deus”. E de São Luis Beltrão se apoderava um tremor impressionante ao pensar na possibilidade de se condenar, perdendo com isso eternamente a Deus.

 

Seu arrependimento pela menor falta é vivíssimo. Dele procede a ânsia reparadora, a sede de imolação, a tendência irresistível de crucificar-se de mil modos que experimentam continuamente estas almas. Não estão loucas. É uma consequência natural das moções do Espírito Santo através do dom de temor.

 

3) Uma vigilância extrema para evitar as menores ocasiões de ofender a Deus. – é uma consequência lógica do efeito anterior.

 

Nada temem tanto estas almas como a menor ofensa a Deus. Eles viram claramente, à luz contemplativa dos dons do Espírito Santo, que na realidade é este o único mal sobre a terra; os demais não merecem tal nome. Como estão distantes estas almas de se colocarem voluntariamente nas ocasiões de pecado! Não há pessoa tão apreensiva que escape com tanta rapidez e presteza de um doente empesteado como estas almas da menor sombra ou perigo de ofender a Deus. Esta vigilância extrema e atenção constante faz com que essas almas vivam sob a moção do especial do Espírito Santo, com uma pureza de consciência tão grande, que às vezes torna impossível – por falta de matéria – recepção de absolvição sacramental, a não ser que submeta a ela alguma falta da vida passada, sobre a qual recaia novamente a dor e o arrependimento.

 

4) Desprendimento perfeito de tudo o que é criado. – O dom de ciência – como veremos – produz este mesmo efeito, embora desde outro ponto de vista. É que os dons, como dissemos, estão mutuamente conectados entre si e com a caridade, se entrelaçando e se influenciando mutuamente.

 

É perfeitamente compreensível. A alma que através do dom de temor vislumbrou um relâmpago da grandeza e majestade de Deus, há de estimar forçosamente como sujeira e esterco todas as grandezas criadas. (Fp 3, 8.) Honras, riquezas, poderio, dignidades..., tudo o considera menos que palha, como algo indigno de merecer um minuto de atenção. Lembre-se do efeito que produziram em Santa Teresa as joias que sua amiga, Dona Luisa de la Cerda, lhe mostrou em Toledo: não lhe cabia na cabeça que as pessoas pudessem sentir apreço por uns cristaizinhos que brilham um pouco mais do que os correntes e ordinários:

 

Eu ficava rindo comigo mesma e sentindo pena de ver o que os homens estimam, lembrando-me do que tem guardado para eles o Senhor. E pensava quão impossível seria para mim, ainda que eu comigo mesma quisesse tentar, ter aquelas coisas em alguma conta, se o Senhor não me tirasse a lembrança das outras.

 

7. Bem-aventuranças e frutos que dele se derivam

 

Segundo o Doutor Angélico, com o dom de temor se relacionam duas bem-aventuranças evangélicas: a primeira – “Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino dos céus”(Mt 5, 3.) – e a terceira – “Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados”.( Mt 5, 5.)

 

A primeira corresponde diretamente ao dom de temor, já que, em virtude da reverência filial que nos faz sentir ante Deus, nos impulsiona a não buscar nosso engrandecimento nem na exaltação de nós mesmos (soberba) nem nos bens exteriores (honras e riquezas). É tudo o que pertence à pobreza de espírito, seja entendida como aniquilação do espírito soberbo e inflado – como disse Santo Agostinho –, seja do desprendimento de todas as coisas temporais por instinto do Espírito Santo, como dizem santo Ambrosio e São Jerônimo.

 

Indiretamente, o dom de temor se relaciona também com a bem-aventurança relativa aos que choram. Porque do conhecimento da divina excelência e de nossa pequenez e miséria se segue o desprezo de todas as coisas terrenas e a renúncia aos deleites carnais, com o pranto e a dor dos extravios passados.

 

Por isso se vê claramente que o dom de temor refreia todas as paixões, tanto as do apetite irascível como as do concupiscível. Porque, pelo medo reverencial à majestade divina ofendida pelo pecado, refreia o ímpeto das irascíveis (esperança, desesperação, audácia, temor e ira), e rege e modera todas concupiscíveis (amor, ódio, desejo, aversão, gozo e tristeza). É, pois, um dom de valor inestimável, embora ocupe hierarquicamente o último lugar entre todos.

 

Dos chamados frutos do Espírito Santo, (Gl 5, 22-23.) pertencem ao dom de temor a modéstia, que é uma consequência da reverência do homem ante a divina majestade, e a continência e castidade, que se seguem da moderação e canalização das paixões concupiscíveis, efeito próprio do dom de temor.

 

8. Vícios opostos

 

Segundo São Gregório, ao dom de temor se opõe principalmente a soberba, mais intensamente ainda do que à virtude da humildade. Porque o dom de temor – como já vimos – se concentra antes de mais nada na eminência e majestade de Deus, ante a qual o homem, pelo instinto do Espírito Santo, sente seu próprio nada e vileza.

 

A humildade se concentra também preferencialmente na grandeza de Deus, em contraste com seu próprio nada; mas à luz da simples razão iluminada pela fé e, por isso mesmo, com uma modalidade humana e imperfeita. Portanto, é manifesto que o dom de temor exclui a soberba de um modo mais alto que a virtude da humildade. O temor exclui até a raiz e o princípio da soberba, como diz São Tomás. Logo, a soberba se opõe ao dom de temor de uma maneira mais profunda e radical do que a virtude da humildade.

 

Indiretamente se opõe também ao dom de temor o vício da presunção, que injuria à divina justiça ao confiar excessiva e desordenadamente na misericórdia. Neste sentido, disse São Tomás que a presunção se opõe por razão da matéria, ou seja, enquanto que despreza algo divino, ao dom de temor, do qual é próprio reverenciar a Deus.

 

9. Meios para fomentar este dom

 

Como já explicamos, os dons do Espírito Santo somente podem ser postos em exercício pelo próprio Espírito Santo; diferentemente das virtudes infusas, sobre as quais podemos atuar nós mesmos sob a influência de uma simples graça atual, que Deus põe sempre a nossa disposição, como o ar que respiramos. No entanto, podemos e devemos pedir ao Espírito Santo que seus dons atuem em nós, fazendo ao mesmo tempo de nossa parte tudo quanto pudermos para nos dispor a receber a divina moção, que colocará em movimento os dons.

 

Aparte dos meios gerais para atrair para si o olhar misericordioso do Espírito Santo – recolhimento profundo, pureza de coração, fidelidade à graça, invocação frequente do divino Espírito, etc. – ,eis aqui alguns meios relacionados com maior proximidade ao dom de temor:

 

a) Meditar com frequência na infinita grandeza e majestade de Deus. – Nunca poderemos chegar a adquirir com nossos pobres esforços discursivos o conhecimento contemplativo, vivíssimo e penetrante que proporcionam os dons do Espírito Santo. (“Meditar no inferno, por exemplo, é ver um leão pintado; contemplar o inferno é ver um leão vivo”. (P. Lallemant, La doctrina espiritual princ.7 c.4 a.5). É sabido que a contemplação é efeito dos dons intelectivos do Espírito Santo.)

 

Mas algo podemos fazer refletindo no poder e majestade de Deus, que tirou todas as coisas do nada só com o império de sua vontade, (Gn 1, 1.) que chama por seu nome as estrelas, as quais respondem no ato, tremendo de respeito, (Br 3, 33-36) que é mais admirável e imponente que os vergalhões do mar bravio, que virá sobre as nuvens do céu com grande poder e majestade a julgar os vivos e os mortos (Lc 21, 27) e ante aquele que eternamente tremerão de respeito os principados e potestades angélicas: tremunt potestates.

 

b) Acostumar-se a tratar a Deus com confiança filial, porém cheia de reverência e respeito. – Não esqueçamos nunca que Deus é nosso Pai, mas também o Deus de tremenda grandeza e majestade. Com frequência as almas piedosas se esquecem deste último e se permitem familiaridades excessivas no trato com Deus, cheias de irreverente atrevimento. É incrível, certamente, até que ponto Eva sua confiança e familiaridade com as almas que lhe são gratas, mas é preciso que Ele tome a iniciativa. Enquanto isso, a alma deve permanecer em uma atitude reverente e submissa que, por outra parte, está muito longe de prejudicar à doce confiança e intimidade própria dos filhos adotivos.

 

c) Meditar com frequência na infinita malicia do pecado e conceber um grande horror para com ele. – Os motivos do amor são por si mesmos mais poderosos e eficazes que os de temor para evitar o pecado como ofensa a Deus. Mas também estes contribuem poderosamente para que nos detenhamos diante do crime. A lembrança dos terríveis castigos que Deus tem preparados para os que desprezam definitivamente suas leis seria o bastante para fazer-nos sair do pecado se só o meditássemos com seriedade e prudente reflexão. “É horrendo – disse São Paulo – cair nas mãos do Deus vivo”. (Hb 10,31) Temos de pensar nisso com frequência, sobretudo quando a tentação venha a colocar diante de nós as lisonjas do mundo ou da carne. Deve-se procurar conceber um horror tão grande ao pecado, que estejamos prontos e dispostos a perder todas as coisas e ainda a própria vida antes do que cometê-lo. Para isso nos ajudará muito a fuga das ocasiões perigosas, que nos aproximariam do pecado; a fidelidade ao exame diário de consciência, para prevenir as faltas voluntárias e chorar as que nos tenham escapado; e, sobretudo, a consideração de Jesus Cristo crucificado, vítima propiciatória por nossos crimes e pecados.

 

d) Colocar cuidado especial na mansidão e humildade no trato com o próximo. – Aquele que tenha consciência clara de que o Deus de infinita majestade lhe perdoou misericordiosamente dez mil talentos, como ousará exigir com arrogância e desprezo os cem dinares que acaso possa lhe dever um co-servo irmão seu? (Mt 18, 23-35) Devemos perdoar cordialmente as injúrias, tratar a todos com delicadeza, com profunda humildade e mansidão, tendo a todos por melhores que nós (ao menos enquanto que provavelmente não tenham resistido à graça tanto como nós se houvessem recebido os dons que Deus nos deu com tanta abundância e prodigalidade). Quem tenha cometido em sua vida algum pecado mortal, já nunca poderá se humilhar o bastante: é um “resgatado do inferno”, nenhum lugar tão baixo pode existir fora dele que não seja demasiado alto ou elevado para quem mereceu um posto eterno aos pés de Satanás.

 

e) Pedir com frequência ao Espírito Santo o temor reverencial de Deus. – No fim das contas, toda disposição perfeita é um dom de Deus que só pela humilde e perseverante oração podemos alcançar. A liturgia católica está cheia de fórmulas sublimes: “Se estremece minha carne por temor a ti e temo teus juízos”;(Sl 118, 120) “Mantém para com teu servo teu oráculo, que prometeste aos que te temem”,( Sl 118, 38.) etc. Estas e outras fórmulas parecidas hão de brotar frequentemente de nosso coração e de nossos lábios, bem convencidos de que “o temor de Deus é o princípio da sabedoria”( Eclo 1,15) e de que é mister operar nossa salvação “com temor e tremor”,( Fl 2, 12.) seguindo o conselho que nos dá o próprio Espírito Santo por meio do salmista: “Servi ao Senhor com temor e prestai-lhe homenagem com tremor”.( Sl 2, 11)

 

Fonte: Fr. Antonio Royo Marín - O Grande desconhecido.