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O dom de Piedade

 

O terceiro dos dons do Espírito Santo em escala ascendente do menor ao maior, é o chamado dom de piedade. Tem por missão fundamental aperfeiçoar a virtude infusa do mesmo nome – derivada da virtude cardeal da justiça -, imprimindo em nossas relações com Deus e com o próximo o sentido filial e fraterno que deve regular o trato dos filhos de uma mesma família para com seu pai e seus irmãos. O dom de piedade nos comunica o espírito de família de Deus. 

 

1. Natureza

 

O dom de piedade é um hábito sobrenatural infundido por Deus com a graça santificante para excitar em nossa vontade, por instinto do Espírito Santo, um afeto filial para com Deus, considerado como Pai, e um sentimento enquanto irmãos nossos e filhos do mesmo Pai, que está nos céus.

 

Sobre esta definição convém destacar o seguinte:

 

a) O dom de piedade, como dom afetivo que é, reside na vontade como potência da alma.

 

b) Se distingue da virtude infusa de mesmo nome na qual tende para Deus como Pai – assim como o dom –, porém com uma modalidade humana, ou seja, regulada pela razão iluminada pela fé; enquanto que o dom o faz por instinto do Espírito Santo, ou seja, com uma modalidade divina incomparavelmente mais perfeita.

 

c) O dom de piedade se estende a todos os homens enquanto filhos do mesmo Pai, que está nos céus. E também a tudo quanto pertence ao culto de Deus – aperfeiçoando a virtude da religião até o máximo -, e ainda a toda a matéria da justiça e virtudes anexas, cumprindo todas suas exigências e obrigações por um motivo mais nobre e uma formalidade mais alta, ou seja: considerando-as como deveres para com seus irmãos, os homens, que são filhos e familiares de Deus. Assim como a virtude da piedade é a virtude familiar por excelência, em um plano mais alto e universal, é o dom do mesmo nome o encarregado de unir e congregar, sob o olhar amoroso do Pai celestial, a toda a grande família dos filhos de Deus.

 

2. Importância e necessidade

 

O dom de piedade é absolutamente necessário para aperfeiçoar até o heroísmo a matéria pertencente à virtude da justiça e a todas suas derivadas, especialmente a religião e a piedade, sobre as quais recai de uma maneira mais imediata e principal.

 

Quão distinto é, por exemplo, praticar o culto de Deus unicamente sob o impulso da virtude da religião, que O apresenta a nós como Criador e Dono soberano de tudo quanto existe, e praticá-lo pelo instinto do dom de piedade, que nos faz ver n’Ele a um Pai amorosíssimo que nos ama com infinita ternura! As coisas do serviço de Deus – culto, oração, sacrifício, etc. – se cumprem quase sem esforço algum, com refinada perfeição e delicadeza: trata-se do serviço do Pai e já não mais do Deus de tremenda majestade.

 

E no trato dos homens, que toque de acabamento e beleza coloca o sentimento entranhável de que todos somos irmãos e filhos de um mesmo Pai, às exigências, em si já sublimes, da caridade e da justiça!

 

E ainda no que se refere às próprias coisas materiais, como tudo muda de panorama! Porque para os que estão profundamente governados pelo dom de piedade, a terra e a criação inteira são a “casa do Pai”, na qual tudo quanto existe lhes fala d’Ele e de sua infinita ternura. Descobrem sem esforço o sentido religioso que pulsa em todas as coisas. Todas elas – mesmo o lobo, as árvores, as flores e a própria morte – são irmãs nossas (São Francisco de Assis). Então, é quando as virtudes cristãs adquirem um matiz delicadíssimo, de refinada perfeição e acabamento, que seria inútil exigir delas desligadas da influência do dom de piedade. Sem os dons do Espírito Santo – repitamo-lo uma vez mais – nenhuma virtude infusa pode chegar a seu perfeito desenvolvimento ou expansão.

 

A piedade – diz a este propósito o P. Lallemant – tem uma grande extensão no exercício da justiça cristã. Se projeta não somente sobre Deus, mas sobre tudo quanto se relacione com Ele, como a Sagrada Escritura, que contém sua palavra; os bem-aventurados, que o possuem na glória; as almas do purgatório, que se purificam para Ele, os homens da terra, que caminham para Ele. Nos dá espírito de filho para com os superiores, espírito de pai para com os inferiores, espírito de irmão para com os iguais, entranhas de compaixão para os que sofrem e uma terna inclinação para socorrer-lhes e ajudar-lhes... É ele que nos faz afligir com os afligidos, chorar com os que choram, alegrar-se com os que se alegram, suportar com doçura as debilidades dos enfermos e as faltas dos imperfeitos; enfim, fazer tudo para todos, como o grande apóstolo São Paulo.(1Cor 9, 22.)

 

3. Efeitos que produz na alma

 

São maravilhosos os efeitos que produz na alma a atuação intensa do dom de piedade.

 

Eis aqui os principais:

 

1) Uma grande ternura filial para com o Pai que está nos céus. – é o efeito primário e fundamental. A alma compreende perfeitamente e vive com inefável doçura aquelas palavras de São Paulo: “Porquanto não recebestes um espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba! Pai! O Espírito mesmo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus”.(Rm 8, 15-16)

 

Santa Teresinha do Menino Jesus – em quem, como é sabido, brilhou o dom de piedade em grau sublime – não podia pensar nisto sem chorar de amor. “Ao entrar certo dia em sua cela uma noviça, deteve-se surpreendida diante da celestial expressão de seu rosto. Estava costurando com grande atividade e, não obstante, parecia abismada em profunda contemplação. – Em que pensais?, perguntou-lhe a jovem irmã. – Estou meditando o Pai-nosso, respondeu ela. É tão doce chamar a Deus de Pai nosso!... E ao dizer isto, as lágrimas brilhavam em seus olhos”.

 

Dom Columba Marmión, o célebre abade de Meredsous, possuía também em alto grau este sentimento de nossa filiação divina adotiva. Para ele, Deus é, antes de tudo e sobretudo, nosso Pai. O monastério é a “casa do Pai”, e todos seus moradores formam a família de Deus. O mesmo deve ser dito do mundo inteiro e de todos os homens. Insiste repetidas vezes, em todas suas obras, na necessidade de cultivar este espírito de adoção, que deve ser a atitude fundamental do cristão frente a Deus. O mesmo pedia mentalmente este espírito de adoção ao se inclinar no Gloria Patri ao final de cada salmo. Eis aqui um texto esplêndido de sua preciosa obra Jesuscristo en sus misterios, que resume admiravelmente seu pensamento: “Não esqueçamos jamais que toda a vida cristã, como toda a santidade, se reduz a ser por graça o que Jesus é por natureza: filho de Deus. Daí a sublimidade de nossa religião. A fonte de todas as preeminências de Jesus, o valor de todos seus estados, da fecundidade de todos seus mistérios, está em sua geração divina e em sua qualidade de Filho de Deus. Por isso, o santo mais elevado no céu será o que neste mundo for melhor filho de Deus, o que melhor fizer frutificar a graça de adoção sobrenatural em Jesus Cristo”.

 

A oração predileta destas almas é o Pai Nosso. Encontram nela tesouros insondáveis de doutrina e doçuras inefáveis de devoção, como lhe ocorreria a Santa Teresa de Jesus: “Espanta-me ver que em tão poucas palavras estejam encerradas toda a contemplação e a perfeição, parecendo que não temos a necessidade de estudarmos nenhum livro: basta-nos o Pai-nosso”.

 

2) Nos faz adorar o mistério da paternidade divina intra-trinitária. – Em suas manifestações mais altas e sublimes, o dom de piedade nos faz penetrar no mistério da vida íntima de Deus, dando-nos um sentimento vivíssimo, impregnado de respeito ao Verbo eterno. Já não se trata tão somente de sua paternidade espiritual sobre nós pela graça, mas de sua divina paternidade, eternamente fecunda no seio da Trindade Beatíssima. A alma se compraz com inefável doçura no mistério da geração eterna do Verbo, que constitui, se é licito falar assim, a própria felicidade de Deus.

 

E diante desta perspectiva soberana, sempre eterna e sempre atual, a alma sente a necessidade de aniquilar-se, de calar e de amar, sem mais linguagem além da adoração e das lágrimas. Gosta de repetir no mais fundo de seus espírito aquela sublime expressão do Glória da missa: “Te damos graças por tua imensa glória: propter magnam gloriam tuam”. É o culto e a adoração da Majestade divina por si mesma, sem nenhuma relação com os benefícios que dela tenhamos podido receber. É o amor puro em toda sua impressionante grandeza, sem mescla alguma de elementos humanos egoístas.

 

3) Um filial abandono nos braços do pai celestial. – Intimamente penetrada de sentimento de sua filiação divina adotiva, a alma se abandona tranquila e confiada nos braços de seu Pai celestial. Nada lhe preocupa, nem é capaz de perturbar a paz inalterável de que goza. Não pede nada, nem rechaça nada em relação a sua saúde ou enfermidade, vida curta ou longa, consolos ou aridez, energia ou debilidade, perseguições ou louvores, etc. Se abandona totalmente nos braços de Deus, e o único que pede e ambiciona é glorificar-lhe com todas suas forças e que todos os homens reconheçam sua filiação divina adotiva e se portem como verdadeiros filhos de Deus, louvando e glorificando ao Pai que está nos céus.

 

4) Nos faz ver no próximo a um filho de Deus e irmão em Jesus Cristo.- É uma consequência natural da filiação adotiva da graça. Se Deus é nosso Pai, todos somos filhos de Deus e irmão em Jesus Cristo, em ato ou ao menos em potência. Porém, com que força percebem e vivem esta verdade tão sublime as almas dominadas pelo dom de piedade! Amam a todos os homens com apaixonada ternura, vendo neles a irmãos queridíssimos em Cristo, aos quais quiseram encher de todas as classes de graças e bendições. Deste sentimento transborda a alma de São Paulo quando escrevia aos Filipenses (4,1) “Portanto, meus muito amados e saudosos irmãos, alegria e coroa minha, continuai assim firmes no Senhor, caríssimos”.

 

Levada por esses sentimentos profundos, a alma se entrega a toda classe de obras de misericórdia para com os desgraçados, considerando-os como verdadeiros irmãos e servindo-lhes para comprazer ao Pai de todos. Todos quantos sacrifícios exija o serviço do próximo – mesmo do ingrato e mal-agradecido – lhe parecem pouco. Em cada um deles vê a Cristo, o Irmão maior, e faz por ele o que faria com o próprio Cristo. E tudo quanto faz – sendo heroico e sobre-humano muitas vezes – lhe parece tão natural e simples, que se admiraria muitíssimo e lhe causaria grande estranheza que alguém o ponderasse como se tivesse algum valor: “Mas se é meu irmão!”, se limitaria a responder. Todos seus movimentos e operações em serviço do próximo os realiza pensando no Pai comum, como próprios e devidos a irmãos e familiares de Deus; ( Ef 2,19) e isto faz com que todos eles venham a ser atos de religião de um modo sublime e eminente. Mesmo o amor e a piedade que professa a seus familiares e consanguíneos estão profundamente penetrados desta visão mais alta e sublime, que os apresenta como filhos de Deus e irmãos em Jesus Cristo.

 

5) Nos move ao amor e devoção às pessoas e coisas relacionadas de algum modo com a paternidade de Deus ou a fraternidade cristã. – em virtude do dom de piedade se aperfeiçoa na alma o amor filial para com a Santíssima Virgem Maria, a quem considera como terníssima mãe e com quem tem todas as confianças e atrevimentos de um filho para com a melhor das mães.

 

Ama com ternura aos anjos e santos, que são seus irmãos maiores, que já gozam da presença contínua do Pai na mansão eterna dos filhos de Deus. Às almas do purgatório, às quais atende e socorre com sufrágios contínuos, considerando-as como irmãs queridas que sofrem. Ao papa, o doce “Cristo na terra”, que é a cabeça visível da Igreja e pai de toda a cristandade. Aos superiores, nos quais se concentra, sobretudo, em seu caráter de pais mais do que de chefes ou inspetores, servindo-lhes e obedecendo-lhes em tudo com verdadeira alegria filial.

 

À pátria, que quisesse vê-la empapada do espírito de Jesus Cristo em suas leis e costumes e pela qual derramaria com gosto seu sangue ou se deixaria queimar viva, como Santa Joana D’Arc. À Sagrada Escritura, que lê com o mesmo respeito e amor, como se trata de uma carta do Pai enviada desde o céu para lhe dizer o que tem de fazer ou o que quer dela. Às coisas santas, sobretudo as que pertencem ao culto e serviço de Deus (cálices sagrados, custódias, etc.) nos quais vê os instrumentos do serviço e glorificação do Pai. Santa Teresinha estava felicíssima por seu ofício de sacristã, que lhe permitia tocar os vasos sagrados e ver seu rosto refletido no fundo dos cálices...

 

4. Bem-aventuranças e frutos que dele se derivam

 

Segundo São Tomás, com o dom de piedade se relacionam intimamente três das bem-aventuranças evangélicas:

 

a) Bem-aventurados os mansos, porque a mansidão tira os impedimentos para o exercício da piedade.

 

b) Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque o dom de piedade aperfeiçoa as obras da virtude da justiça e todas suas derivadas.

 

c) Bem-aventurados os misericordiosos, porque a piedade se exercita também nas obras de misericórdia corporais e espirituais.

 

Dos frutos do Espírito Santo devem atribuir-se diretamente ao dom de piedade a bondade e a benignidade; e indiretamente a mansidão, enquanto aparta os impedimentos para os atos de piedade.

 

5. Vícios opostos

 

Os vícios que se opõem ao dom de piedade podem ser agrupados sob o nome genérico de impiedade. Porque, como precisamente ao dom de piedade corresponde oferecer a Deus com filial afeto o que lhe pertence como nosso Pai, todo aquele que de uma forma ou de outra quebre voluntariamente este dever, merece propriamente o nome de ímpio.

 

Por outra parte, “a piedade, enquanto dom, consiste em certa benevolência sobre-humana para com todos”, considerando-os como filhos de Deus e nossos irmãos em Cristo. E, neste sentido, São Gregório Magno opõe ao dom de piedade a dureza de coração, que nasce do amor desordenado a nós mesmos.

 

O P. Lallemant escreveu uma página admirável sobre esta dureza de coração. Ei-la aqui:

 

O vício oposto ao dom de piedade é a dureza de coração, que nasce do amor desordenado de nós mesmos: porque este amor faz com que naturalmente sejamos mais sensíveis a nossos próprios interesses e que nada nos afete senão aquilo que se relaciona com nós mesmos; que vejamos as ofensas a Deus sem lágrimas, e as misérias do próximo sem compaixão; que não queremos nos incomodar em nada para ajudar aos outros; que não possamos suportar seus defeitos; que arremetamos contra eles por qualquer bagatela e que conservemos para com eles em nosso coração sentimentos de amargura e de vingança, de ódio e antipatia. Ao contrário, quanto mais caridade e amor de Deus tem uma alma, mais sensível é a todos os interesses de Deus e do próximo.

 

Esta dureza é extrema nos grandes do mundo, nos ricos e avaros, nas pessoas sensuais e nos que não abrandam seu coração pelos exercícios de piedade e pelo uso das coisas espirituais. Se encontra também com frequência nos sábios que não juntam a devoção com a ciência, e que para lisonjear-se deste efeito o chamam de solidez de espírito; Porém os verdadeiros sábios são os mais piedosos, como Santo Agostinho, São Tomás, São Boaventura, São Bernardo, e na Companhia, Lainez, Suarez, Belarmino, Leslio.

 

Uma alma que não pode chorar seus pecados, ao menos com lágrimas do coração, tem muito de impiedade ou de impureza, ou de ambas as coisas ao mesmo tempo, como ocorre ordinariamente aos que têm o coração endurecido.

 

É uma grande desgraça quando se estima mais na religião os talentos naturais e adquiridos do que a piedade. Vereis com frequência religiosos, e talvez superiores, que dirão em voz alta que fazem muito mais caso de um espírito capaz de atender a muitos negócios do que de todas essas pequenas devoções, que são, dizem, boas para mulheres, mas impróprias de um espírito sólido; chamando solidez de espírito esta dureza de coração, tão oposta ao dom de piedade. Deveriam pensar estes senhores que a devoção é um ato da virtude da religião, ou um fruto da religião e da caridade, e que, por conseguinte, é preferível a todas as virtudes morais, já que a religião segue imediatamente, no que concerne à dignidade, às virtudes teologais.

 

Quando um padre grave ou respeitável pela idade, ou pelos cargos que desempenhou na religião, afirma diante dos jovens religiosos que estima os grandes talentos e os empregos brilhantes, ou que prefere aos que sobressaem pela ciência ou engenho mais do que aos que não têm tanto essas coisas, ainda que tenham mais virtude e piedade, faz um gravíssimo dano a esta pobre juventude. É um veneno que se lhes inocula no coração e do qual provavelmente jamais se curarão. Uma palavra que se diz confidencialmente a outro é capaz de lhe transtornar completamente”.

 

6. Meios de fomentar este dom

 

Aparte dos meios gerais para fomentar os dons do Espírito Santo (recolhimento, oração, fidelidade à igreja, etc. ), se relacionam com maior proximidade ao dom de piedade os seguintes:

 

a) Cultivar em nós o espírito de filhos adotivos de Deus. – Não há verdade que se nos inculque tantas vezes no Evangelho como a de que Deus é nosso Pai. Só no sermão da montanha o Senhor o repete catorze vezes. Esta atitude de filhos diante do Pai se destaca tanto na Nova Lei, que alguns quiseram ver nela a nota mais típica e essencial do cristianismo.

 

Nunca insistiremos o bastante em fomentar em nossa alma o espírito de filial confiança e abandono nos braços de nosso Pai amorosíssimo. Deus é nosso Criador, será nosso Juiz na hora da morte; porém, antes e acima de tudo, é sempre nosso Pai. O dom de temor nos inspira para com ele uma respeitosa reverência – jamais medo –, perfeitamente compatível com a ternura e confiança filial que nos inspira o dom de piedade. Somente sob a ação transformante deste dom a alma se sente plenamente filha de Deus e vive com infinita doçura sua condição de tal. Mas desde já podemos fazer muito para atingir este espírito, dispondo-nos, com ajuda da graça, a permanecer sempre diante de Deus como um filho ante seu amorosíssimo pai. Peçamos continuamente o espírito de adoção, vinculando esta petição a qualquer exercício que tenhamos que repetir muitas vezes ao dia – como fazia Dom Marmión a cada Gloria Patri do final dos salmos – e nos esforcemos em fazer todas as coisas pelo amor a Deus, tão somente para comprazer a nosso Pai amoroso, que está nos céus.

 

b) Cultivar o espírito de fraternidade universal com todos os homens. – É este, como vimos, o principal efeito secundário do dom de piedade. Antes de praticá-lo em toda sua plenitude pela atuação do dom, podemos fazer muito de nossa parte com ajuda da graça ordinária. Alarguemos cada vez mais a capacidade de nosso coração até introduzir nele o mundo inteiro com entranhas de amor. Todos somos filhos de Deus e irmãos de Jesus Cristo. São Paulo repetia com persuasiva insistência aos primeiros cristãos: “porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus”. (Gl 3,26-28.)

 

Se fizéssemos de nossa parte tudo quanto fosse possível para tratar a todos os nossos semelhantes como verdadeiros irmãos em Deus, sem dúvida atrairíamos sobre nós seu olhar misericordioso, que em nada se compraz tanto quanto em nos ver a todos unidos intimamente a seu divino Filho. O próprio Cristo quer que o mundo conheça que somos discípulos seus no amor entranhável que tenhamos uns aos outros. ( Jo 13, 35.)

 

c) considerar todas as coisas, mesmo as puramente materiais, como pertencentes à casa do pai, que é a criação inteira. – Que sentido tão profundamente religioso encontram em todas as coisas as almas governadas pelo dom de piedade! São Francisco de Assis se abraçou apaixonadamente a uma árvore porque era “seu irmão”em Deus. São Paulo da Cruz se extasiava ante as flores de seu jardim, que lhe falavam do Pai celestial. Santa Teresinha se pôs a chorar de ternura ao contemplar a uma galinha abrigando a seus pintinhos debaixo de suas asas, lembrando-se da imagem evangélica com que Cristo quis nos mostrar os sentimentos de seu divino coração, inclusive para com os filhos ingratos e rebeldes. (Mt 23, 37.)

 

Sem chegar a estes requintes, que são próprios do dom de piedade atuando intensamente, que sentido tão distinto poderíamos dar a nosso trato com as criaturas – mesmo as mais puramente materiais – se nos esforçássemos em descobrir, à luz da fé, seu aspecto religioso, que pulsa tão profundamente em todas elas! A criação inteira é a casa do Pai, e todas as coisas nela pertencem a Ele. Com que delicadeza trataríamos as coisas puramente materiais! Descobriríamos nelas algo divino, que nos faria respeitá-las como se fossem cibórios sagrados. A que distância do pecado – que é sempre uma espécie de sacrilégio contra Deus ou as coisas de Deus – nos poria esta atitude tão cristã, tão religiosa e tão meritória diante de Deus! Toda nossa vida se elevaria de plano, alcançando uma altura sublime sob o olhar amorosíssimo de nosso Pai, que está nos céus.

 

d) Cultivar o espírito de total abandono nos braços de Deus. – Em toda sua plenitude não o conseguiremos que atue intensamente em nós o dom de piedade. Mas, enquanto isso, esforcemo-nos em fazer de nossa parte tudo quanto pudermos. Devemos nos convencer plenamente de que, sendo Deus nosso Pai, é impossível que nos suceda algo mal em tudo quanto quer ou permita que recaia sobre nós. E assim devemos permanecer indiferentes à saúde ou doença, à vida longa ou curta, à paz ou à guerra, ao consolo ou aridez de espírito, etc., repetindo continuamente nossos atos de entrega e abandono a sua santíssima vontade. O fiat, o “sim”, o “o que queiras, Senhor” deveria ser a atitude fundamental do cristão diante de seu Deus, em total e filial abandono à sua divina e paternal vontade, que não pode querer para nós senão os maiores bens, mesmo que às vezes tenham a aparência de males ante nossa visão puramente humana e natural.

 

Fonte: Fr. Antonio Royo Marín - O Grande desconhecido.