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O dom de Sabedoria

 

O dom encarregado de levar a sua última perfeição a virtude da caridade é o de sabedoria. Sendo a caridade a mais perfeita e excelente de todas as virtudes, já se compreende que o dom de sabedoria será, por sua vez, o mais perfeito e excelente de todos os dons.

 

1. Natureza

 

O dom de sabedoria é um hábito sobrenatural, inseparável da caridade, pelo qual julgamos retamente de Deus e das coisas divinas por suas últimas e altíssimas causas sob o instinto especial do Espírito Santo, que nos faz saboreá-las por certa conaturalidade e simpatia.

 

É um hábito sobrenatural, ou seja, infundido por Deus na alma juntamente com a graça e as virtudes infusas, como todos os demais dons.

 

Inseparável da caridade. - É precisamente a virtude que vem a aperfeiçoar, dando-lhe uma modalidade divina, da qual carece submetida ao regime da razão humana, mesmo quando iluminada pela fé. Por sua conexão com a caridade, possuem o dom de sabedoria (enquanto hábito) todas as almas em estado de graça e é incompatível com o pecado mortal. O mesmo ocorre com os demais dons.

 

Pelo qual julgamos retamente. – Nisto, entre outras coisas, se distingue do dom de entendimento. O próprio deste último – como já vimos – é uma penetrante e profunda intuição das verdades da fé no plano da simples apreensão, sem emitir juízo sobre elas. O juízo é emitido por outros dons intelectivos na seguinte forma: acerca das coisas criadas, o dom de ciência; e enquanto à aplicação concreta a nossas ações, o dom de conselho. Enquanto que supõe um juízo, o dom de sabedoria reside no entendimento como em seu sujeito próprio; mas como o juízo, por conaturalidade com as coisas divinas, supõe necessariamente a caridade, o dom de sabedoria tem sua raiz causal na caridade, que reside na vontade. E não se trata de uma sabedoria puramente especulativa, senão também prática, já que ao dom de sabedoria pertence, em primeiro lugar, a contemplação do divino, que é como a visão dos princípios; e em segundo lugar, dirigir os atos humanos segundo razões divinas. Em virtude desta suprema direção da sabedoria por razões divinas, a amargura dos atos humanos se converte em doçura, e o trabalho em descanso.

 

De Deus. – Esta diferença é própria do dom de sabedoria. Os demais dons percebem, julgam ou atuam sobre coisas distintas de Deus. O dom de sabedoria, por sua vez, recai primária e principalmente sobre o próprio Deus, do qual nos dá conhecimento saboroso e experimental, que enche a alma de indizível suavidade e doçura. Precisamente em virtude desta inefável experiência de Deus, a alma julga todas as demais coisas que a Ele pertencem pelas razões mais altas e supremas, ou seja, por razões divinas; porque, como explica São Tomás, quem conhece e saboreia a causa altíssima por excelência, que é o próprio Deus, está capacitado para julgar todas as coisas por suas próprias razões divinas. Voltaremos sobre isso ao assinalar os efeitos que produz na alma este dom.

 

E das coisas divinasPropriamente sobre as coisas divinas recai o dom de sabedoria, mas isto não é obstáculo para que seu juízo se estenda também às coisas criadas, descobrindo nelas suas últimas causas e razões que as entroncam e relacionam com Deus no conjunto maravilhoso da criação. É como uma visão desde a eternidade que abarca tudo o que é criado com uma visão estruturadora, relacionando-o com Deus em sua mais alta e profunda significação por suas razões divinas. Mesmo as coisas criadas são contempladas pelo dom de sabedoria divinamente. Por aqui parece claro que o objeto formal ou primário do dom de sabedoria contém o objeto formal ou primário e material da fé; porque a fé visa primariamente a Deus e secundariamente às outras verdades reveladas. Mas se diferencia dela no que a fé se limita a crer, enquanto que o dom de sabedoria experimenta e saboreia o que a fé crê. (Santa Teresa fala, nas Sétimas moradas, da sublime experiência trinitária da alma que chega aos cumes da união mística com Deus – efeito da atuação intensíssima do dom de sabedoria -, escreve: “Oh! valha-me Deus! Quão diferente coisa é ouvir estas palavras e crer nelas, ou entender por este modo quão verdadeiras são!”(Moradas séptimas, 1,7))

 

Por suas últimas e altíssimas causas. – Isto é próprio e característico de toda verdadeira sabedoria. Há várias classes de sabedoria, às quais êconvêm recordar aqui.

 

Sábio, em geral, é aquele que conhece as coisas por suas últimas e mais altas causas. Antes de chegar a essas alturas há diversos graus de conhecimento, tanto na ordem natural quanto na ordem sobrenatural.

 

E assim:

 

a) O que contempla uma coisa qualquer sem conhecer suas causas, tem dela um conhecimento vulgar ou superficial (p. ex., o aldeão que contempla um eclipse sem saber a que se deve aquilo).

 

b) O que a contempla conhecendo e apontando suas causas próximas, tem um conhecimento científico (p.ex., o astrônomo ante o eclipse).

 

c) O que pode reduzir seus conhecimentos aos últimos princípios do ser natural, possui a sabedoria filosófica, ou meramente natural, que recebe o nome de metafísica.

 

d) O que, guiado pelas luzes da fé, esquadrinha com sua razão natural os dados revelados para lhes arrancar suas virtualidades intrínsecas e deduzir novas conclusões, possui a máxima sabedoria natural que se pode alcançar nesta vida (a teologia), entroncada, já, radicalmente, com a ordem sobrenatural. (É sabido que o hábito da teologia é entitativamente natural, porque procede do discurso natural da razão examinando os dados da fé e extraindo-lhes duas virtualidades intrínsecas, que são as conclusões teológicas. Mas radicalmente – ou seja, em sua raiz – é ou se pode chamá-la sobrenatural, enquanto que parte dos princípios da fé e recebe sua influência iluminadora ao longo do discurso ou raciocínio teológico (cf. I q.1 a.6c e ad 3).

 

e) E o que, pressuposta a fé e a graça, julga por instinto divino as coisas divinas e humanas por suas últimas e altíssimas causas – ou seja, por suas razões divinas –, possui a autêntica sabedoria sobrenatural, que é, precisamente, a que proporciona à alma o dom de sabedoria em plena atuação. Por cima deste conhecimento não há nenhum outro nesta vida. Só lhe superam a visão beatífica e a sabedoria incriada de Deus, que é o Verbo divino.

 

Fica claro que o conhecimento que proporciona à alma a atuação intensa do dom de sabedoria é incomparavelmente superior ao de todas as ciências, incluindo a própria sagrada teologia, que tem já algo de divina. Por isso se dá, por vezes, o caso de uma alma simplória e ignorante, que carece em absoluto de conhecimentos teológicos adquiridos pelo estudo, e que, no entanto, possui, pelo dom de sabedoria, um conhecimento profundíssimo das coisas divinas que pasma e maravilha aos mais eminentes teólogos, como ocorreu com Santa Teresa e outras muitas almas que não tinham “letras”, ou seja, estudo científico nenhum.

 

Sob o instinto especial do Espírito Santo. – é próprio e característico dos dons do próprio divino Espírito, que adquire seu expoente máximo no dom de sabedoria pelas alturas de seu objeto: o próprio Deus e as coisas divinas. O homem, sob a ação dos dons, não procede pelo lento discurso e raciocínio, senão de uma maneira rápida e intuitiva, por um instinto especial, que procede do Espírito Santo mesmo. Não lhes perguntemos aos místicos experimentais as razões que tiveram para agir assim ou para pensar ou dizer tal ou qual coisa, pois não o sabem. Sentiram-no assim com uma clarividência e segurança infinitamente superiores a todos os discursos e raciocínios humanos.

 

Que nos faz saboreá-las por certa co-naturalidade e simpatia. – é outra nota típica dos dons, que alcança sua máxima perfeição no dom de sabedoria, que é em si mesmo um conhecimento saboroso e experimental de Deus e das coisas divinas. Aqui a palavra sabedoria significa, ao mesmo tempo, saber e sabor. As almas que a experimentam compreendem muito bem o sentido daquelas palavras do salmo: “Provai e vede o quão suave é o Senhor”(Sl 33,9). Experimentam deleites divinos que as empurram ao êxtase e lhes fazem pressentir um pouco os gozos inefáveis da eternidade bem-aventurada.

 

2. Importância e necessidade

 

O dom de sabedoria é absolutamente necessário para que a virtude da caridade possa se desenvolver em toda sua plenitude e perfeição. Precisamente por ser a virtude mais excelente, a mais perfeita e divina de todas, está reclamando e exigindo, por sua própria natureza, a regulação divina do dom de sabedoria. Abandonada a si mesma, ou seja, manejada pelo homem no estado ascético, tem que se submeter à regulação humana, ao pobre modo humano que forçosamente lhe imprimirá o homem. Pois bem, esta atmosfera humana lhe torna um pouco menos que irrespirável; a afoga e asfixia, impedindo-lhe de voar às alturas.

 

É uma virtude divina que tem asas para voar até o céu, e a obriga a se mover rasteira ao solo: por razões humanas, até certo ponto, sem se comprometer muito, com grandíssima prudência, com mesquinhez raquítica, etc. Unicamente quando começa a receber a influência do dom de sabedoria, que lhe proporciona a atmosfera e modalidade divina que ela necessita por sua própria natureza de virtude teologal perfeitíssima, começa a caridade, por assim dizer, a respirar livremente. E, por uma consequência natural e inevitável, começa a crescer e se desenvolver rapidamente, levando consigo a alma, como que voando, pelas regiões da vida mística até o cume da perfeição, que jamais poderia alcançar submetida à atmosfera e regulação humana no estado ascético.

 

Desta sublime doutrina se deduzem como corolários inevitáveis duas coisas importantíssimas. Primeira: que o estado místico (ou seja, o regime habitual ou predominante dos dons do Espírito Santo) não só não é algo anormal e extraordinário no desenvolvimento da vida cristã, senão que é, precisamente, a atmosfera normal que exige e reclama a graça (forma divina em si mesma) para que possa desenvolver todas suas virtualidades divinas através de seus princípios operativos (virtudes e dons) , principalmente as virtudes teologais (fé, esperança e caridade), que são absolutamente divinas em si mesmas.

 

O místico deveria ser precisamente o normal em todo cristão, e o é, de fato, em todo cristão perfeito. E segunda: que uma atuação dos dons do Espírito Santo ao modo humano, ademais de impossível e absurda, seria completamente inútil para aperfeiçoar as virtudes infusas, sobretudo as teologais; porque, sendo estas últimas superiores aos próprios dons por sua própria natureza, (Cf. I-II q.68 a.8. As virtudes teologais têm por objeto direto e imediato ao próprio Deus (crido, esperado ou amado), enquanto que os dons recaem diretamente sobre as virtudes infusas (ou seja, algo muito distinto de Deus), para aperfeiçoá-las. Logo, é evidente que as virtudes teologais são, por sua própria natureza, superiores aos próprios dons. Mas, em contrapartida, estes são superiores a todas as virtudes infusas – incluindo as teologais – por sua modalidade divina (enquanto instrumentos diretos e imediatos do Espírito Santo, não da alma em graça, como as virtudes). Mais brevemente: as virtudes teologais são superiores aos dons por sua própria natureza teologal, mas os dons superam a eles por sua modalidade divina.).

 

A única perfeição que podem receber deles é a modalidade divina (própria e exclusiva dos dons), jamais uma modalidade humana, que já tem as virtudes teologais abandonadas a si mesmas no estado ascético, ou seja, submetidas à regulação humana, que já tem as virtudes teologais abandonadas em si mesmas no estado ascético, ou seja, submetidas à regulação humana da pobre alma imperfeitamente iluminada pela luz obscura da fé.

 

3. Efeitos

 

Por sua própria elevação e grandeza e pelo sublime da virtude que deve aperfeiçoar diretamente, os efeitos que produz na alma a atuação do dom de sabedoria são verdadeiramente admiráveis. Eis aqui alguns dos mais importantes:

 

1. Dá aos santos o senso do divino, de eternidade, com que julgam todas as coisas. – é o mais impressionante dos efeitos do dom de sabedoria que aparecem no exterior. Poderia se dizer que os santos perderam por completo o instinto do humano e que foi substituído pelo instinto do divino, com que vêem e julgam todas as coisas. Vêem tudo das alturas, desde o ponto de vista de Deus: os pequenos episódios de sua vida diária da mesma maneira como os grandes acontecimentos internacionais. Em todas as coisas vêem de forma claríssima a mão de Deus, que dispõe ou permite certas coisas para sacar bens maiores.

 

Nunca se concentram nas causas segundas imediatas; passam por elas, sem se deter um só instante, até a causa primeira, que rege e governa tudo desde o alto. Teriam que fazer a si mesmos grande violência para descender aos pontos de vista com que a mesquinhez humana julga as coisas. Um insulto, uma bofetada, uma calunia que se lance contra eles..., e no ato se remontam a Deus, que o quer e o permite para lhes exercitar na paciência e aumentar sua glória. Não se detêm um só instante na causa segunda (a maldade dos homens); se remontam em seguida a Deus e julgam o feito desde aquelas alturas divinas.

 

Não chama desgraça ao que os homens costumam chamar (enfermidades, perseguição, morte), mas unicamente ao que o é em realidade, por sê-lo diante de Deus (o pecado, a tibieza, a infidelidade à graça). Não compreendem que o mundo possa considerar como riquezas e jóias a uns quantos cristaizinhos que brilham um pouco mais do que os demais (Santa Teresa). Vêem de maneira claríssima que não há outro tesouro verdadeiro além de Deus ou as coisas que nos levam a Ele. “De que me vale isto para a eternidade, para glorificar a Deus?”, costumava se perguntar São Luis Gonzaga; eis aqui o único critério diferencial dos santos para julgar o valor das coisas. Dentre outros muitos santos, este dom de sabedoria brilhou em grau eminente em São Tomás de Aquino.

 

É admirável o instinto sobrenatural com que descobre em todas as coisas o aspecto divino que as relaciona e une com Deus. Um acerto tão grande, tão rotundo, tão universal em tudo quanto toca, não pode ser explicado suficientemente por uma sabedoria humana, por mais elevada que se suponha que ela seja; é preciso pensar no instinto divino do dom de sabedoria.

 

Em nossos dias é admirável o caso de Santa Elisabete da Trindade. Segundo o P. Philipon – que estudou tão a fundo as coisas da célebre carmelita de Dijon -, o dom de sabedoria é o mais característico de sua doutrina mística e de sua vida. Arrebatada sua alma por uma sublime vocação contemplativa até o seio mesmo da Trindade Beatíssima, nela estabeleceu sua morada permanente, e desde aquelas divinas alturas contemplava e julgava todas as coisas e acontecimentos humanos. As maiores provas, sofrimentos e contrariedades não acertavam em perturbar um só momento a paz inefável de sua alma: tudo resvalava sobre ela, deixando-a “imóvel e tranquila, como se sua alma estivesse já na eternidade”...

 

2. Faz viver de um modo inteiramente divino os mistérios de nossa santa fé. – Escutemos ao padre Philipon explicando admiravelmente estas coisas: “O dom de sabedoria é o dom real, o que faz entrar mais profundamente às almas na participação do modo deiforme da ciência divina. É impossível elevar-se mais alto fora da visão beatífica, que segue sendo sua regra superior. É a visão do “Verbo espirado ao Amor” comunicada a uma alma que julga todas as coisas por suas causas mais altas, mais divinas, pelas razões supremas, ‘à maneira de Deus’.

 

Introduzida pela caridade na intimidade das pessoas divinas, sob o impulso do Espírito de amor, contempla todas as coisas desde esse centro, ponto indivisível de onde se apresentam a ela como ao próprio Deus: os atributos divinos, a criação, a redenção, a glória, a ordem hipostática, os mais pequenos acontecimentos do mundo. Na medida em que é possível a uma simples criatura, sua visão tende a se identificar com o ângulo de visão que Deus tem de si mesmo e de todo o universo.

 

É a contemplação ao modo deiforme, à luz da experiência da deidade, da qual a alma experimenta em si mesma a inefável doçura: per quandam experientiam dulcedinis.  Para compreender isto é preciso recordar que Deus não pode ver as coisas mais do que em si mesmo: em sua causalidade. Não conhece as criaturas diretamente em si mesmas, nem no movimento da causas contingentes e temporais que regulam sua atividade. Ele as contempla em seu Verbo, sob um modo eterno, apreciando todos os acontecimentos de sua providência à luz de sua essência e de sua glória.

 

A alma, feita participante pelo dom de sabedoria deste modo divino de conhecer, penetra com visão escrutinadora nas profundezas insondáveis da divindade, através das quais contempla todas as coisas coloridas pelo divino. Poderia se dizer que São Paulo pensava nestas almas quando escreveu aquelas assombrosas palavras: ‘porque o Espírito penetra tudo, mesmo as profundezas de Deus’”.(1Cor 2,10.)

 

3. Faz viver em sociedade com as três divinas pessoas, mediante uma participação inefável de sua vida trinitária. – “Enquanto que o dom de ciência – escreve ainda o P. Philipon - toma um movimento ascendente para elevar à alma desde as criaturas até Deus, e o de entendimento, por uma simples mirada de amor, penetra todos os mistérios de Deus por fora e por dentro, o dom de sabedoria, por assim dizer, não sai jamais do coração mesmo da Trindade. Tudo se apresenta a ela neste centro indivisível.

 

A alma assim deiforme não pode ver as coisas mais do que por suas razões mais altas e divinas. Todo o movimento do universo, até os menores átomos, cai sob sua visão à puríssima luz da Trindade e dos atributos divinos, mas ordenadamente, segundo o ritmo em que as coisas procedem de Deus. Criação, redenção, ordem hipostática, tudo se lhe apresenta, mesmo o próprio mal, ordenado à maior gloria da Trindade.

 

Elevando-se, enfim, em uma suprema mirada por cima da justiça, da misericórdia, da providência e de todos os atributos divinos, descobre de pronto todas essas perfeições incriadas em sua fonte eterna: nesta deidade, Pai, Filho e Espírito Santo, que sobrepuja infinitamente todas nossas concepções humanas, estreitas e mesquinhas, e deixa a Deus incompreensível, inefável, inclusive à vista dos bem-aventurados e mesmo à visão beatífica de Cristo; este Deus que é, ao mesmo tempo, em sua simplicidade sobre-eminente, unidade e trindade, essência indivisível e sociedade de três pessoas viventes, realmente distintas segundo uma ordem de processão que não suprime de modo algum sua consubstancial unidade.

 

O olho humano não poderia jamais descobrir um tal mistério, nem o ouvido perceber tais harmonias, nem o coração suspeitar uma tal beatitude se por graça a divindade não houvesse se inclinado até nós em Cristo para nos fazer entrar nestas insondáveis profundidades de Deus sob a direção mesma do Espírito”.

 

A alma chegada a estas alturas já não sai nunca de Deus. Se os deveres de seu estado assim o exigem, se entrega exteriormente a toda classe de trabalhos, mesmo os mais absorventes, com uma atividade incrível; mas “no mais profundo centro de sua alma – como diria São João da Cruz – sente permanentemente a divina companhia de ‘seus Três’ e não lhes abandona um só instante. Se juntaram nela Marta e Maria de modo tão inefável, que a atividade prodigiosa de Marta em nada compromete o sossego e a paz de Maria, que permanece dia e noite em silenciosa em entranhável contemplação aos pés de seu divino Mestre. Sua vida aqui na terra é já um começo da eternidade bem-aventurada”.

 

4. Leva até o heroísmo a virtude da caridade. – É precisamente a finalidade fundamental do dom de sabedoria. Liberada de suas amarras humanas e recebendo a plenos pulmões o ar divino que o dom lhe proporciona, o fogo da caridade adquire rapidamente proporções gigantescas. É incrível até onde chega o amor de Deus nas almas trabalhadas pelo dom de sabedoria. Seu efeito mais impressionante é a morte total do próprio eu. Amam a Deus com um amor puríssimo, somente por sua bondade, sem mistura de interesse ou de motivos humanos.

 

É verdade que não renunciam à esperança do céu, porém a desejam mais do que nunca; mas é porque nele poderão amar a Deus com maior intensidade ainda e sem descanso, nem interrupção alguma. Se, por um absurdo, pudessem amar e glorificar mais a Deus no inferno do que no céu, prefeririam sem vacilar os tormentos eternos. ( Este sentimento foi experimentado pelos santos em grande número. Veja-se, por exemplo, com que simples e sublime delicadeza o expõe Santa Teresinha do Menino Jesus: “Uma noite, não sabendo como testemunhar a Jesus que lhe amava e quão vivos eram meus desejos de que fosse servido e glorificado por toda parte, me sobreveio o triste pensamento de que nunca, jamais, desde o abismo do inferno, lhe chegaria um só ato de amor. Então lhe disse que com gosto consentiria em me ver abismada naquele lugar de tormentos e de blasfêmias para que também ali fosse amado eternamente. Não podia lhe glorificar assim, já que Ele não deseja senão nossa bem-aventurança: mas quando se ama, alguém se vê forçado a dizer mil loucuras”(Historia de un alma c. 5 n.23; 3a ed., Burgos 1950).

 

É o triunfo definitivo da graça, com a morte total do próprio egoísmo. Então é quando começam a cumprir o primeiro mandamento da lei de Deus com toda a plenitude possível neste pobre desterro.

 

No aspecto que concerne ao próximo, a caridade chega, paralelamente, a uma perfeição sublime através do dom de sabedoria. Acostumados a ver a Deus em todas as coisas, mesmo nos mais mínimos acontecimentos, o veem de uma maneira especialíssima no próximo. Lhe amam com uma ternura profunda, inteiramente sobrenatural e divina. Servem-lhe com uma abnegação heróica, plena, por outra parte, de naturalidade e simplicidade. Veem a Cristo nos pobres, nos que sofrem, no coração de todos os irmãos..., e correm para lhe ajudar com a alma cheia de amor. Gozam privando-se das coisas mais necessárias ou úteis para oferecê-las ao próximo, cujos interesses antepõem e preferem aos próprios, como anteporiam os do próprio Cristo, com quem lhe veem identificado.

 

O egoísmo pessoal com relação ao próximo morreu inteiramente. Às vezes, o amor de caridade que abrasa seu coração é tão grande que eclode ao exterior em divinas loucuras que desconcertam a prudência e os cálculos humanos. São Francisco de Assis se abraçou estreitamente a uma árvore – como criatura de Deus –, querendo com isso estreitar em um abraço imenso a toda criação universal, saída das mão de Deus...

 

5. Proporciona a todas as virtudes o último rasgo de perfeição e acabamento. – É uma consequência do efeito anterior. Aperfeiçoada pelo dom de sabedoria, a caridade deixa de sentir sua influência sobre todas as demais virtudes, da qual é verdadeira forma, embora extrínseca e acidental, como ensina São Tomás. Todo o conjunto da vida cristã experimenta esta divina influência. É esse não sei quê de perfeito e acabado que têm as virtudes dos santos e que em vão buscaríamos nas almas menos adiantadas.

 

Em virtude dessa influência do dom de sabedoria através da caridade, todas as virtudes cristãs se elevam de plano e adquirem uma modalidade deiforme, que admite inumeráveis matizes (segundo o caráter pessoal e o gênero de vida dos santos), mas todos tão sublimes que não se poderia precisar qual deles é o mais delicado e refinado. Morto definitivamente o egoísmo, perfeita em toda classe de virtudes, a alma se instala no cume da montanha da santidade, de onde se lê aquela inscrição sublime: “Só mora neste monte a honra e glória de Deus” (São João da Cruz).

 

4. bem-aventuranças e frutos que dele derivam

 

São Tomás, seguindo Santo Agostinho, atribui ao dom de sabedoria a sétima bem-aventurança: Bem aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5, 9.). E prova que lhe convém em seus dois aspectos: enquanto ao mérito e enquanto ao prêmio. Enquanto ao mérito (“os pacíficos”), porque a paz não é outra coisas senão “a tranquilidade da ordem”; e estabelecer a ordem (para com Deus, para com nós mesmos e para com o próximo) pertence precisamente à sabedoria. E enquanto ao prêmio (“serão chamados filhos de Deus”), porque precisamente somos filhos adotivos de Deus por nossa participação e semelhança com o Filho unigênito do Pai, que é a Sabedoria eterna. Enquanto aos frutos do Espírito Santo, pertencem ao dom de sabedoria, através da caridade, principalmente estes três: a caridade, o gozo espiritual e a paz. 

 

5. Vícios opostos

 

Ao dom de sabedoria se opõe o vicio da estultícia ou necedade espiritual, que consiste em certo embotamento do juízo e do senso espiritual que nos impede de discernir ou julgar as coisas de Deus segundo o próprio Deus pelo contato, gosto ou conaturalidade, que é o próprio do dom de sabedoria. Mais lamentável ainda é a fatuidade, que leva consigo a incapacidade total para julgar as coisas divinas. Logo, a estultícia se opõe ao dom de sabedoria como coisa contrária; a fatuidade, como a pura negação.

 

Desta estupidez adoecemos sempre que apreciamos em algo as ninharias deste mundo ou julgamos que vale algo qualquer coisa que não seja a possessão do sumo bem ou que a ela conduz. Portanto, se não somos santos, temos de reconhecer que somos verdadeiramente estúpidos, por muito que doa ao nosso amor próprio.

 

Quando esta estupidez é voluntária por ter o homem submergido nas coisas terrenas até perder de vista ou fazer-se inepto para contemplar as divinas, é um verdadeiro pecado, segundo aquilo que diz São Paulo: “O homem animal não compreende as coisas do Espírito de Deus”.(1Cor 3, 14.) E como não há coisa que embruteça e animalize mais ao homem, até afundar-lhe por completo no lodo da terra, do que a luxúria, dela principalmente provém a estultícia ou necedade espiritual; embora também contribua para isso a ira, que ofusca a mente pela forte comoção corporal, impedindo-lhe de julgar com retidão.

 

6. Meios de fomentar este dom

 

Aparte dos meios gerais que já conhecemos (recolhimento, vida de oração, fidelidade à graça, invocação frequente do Espírito Santo, profunda humildade, etc.), podemos nos dispor para a atuação do dom de sabedoria com os seguintes meios, que estão perfeitamente a nosso alcance com ajuda da graça ordinária:

 

a) Nos esforçarmos em ver todas as coisas desde o ponto de vista de Deus. – Quantas almas piedosas e até mesmo consagradas a Deus veem e ajuízam todas as coisas desde o ponto de vista puramente natural e humano, quando não totalmente mundano! Sua estreiteza de visão e miopia espiritual é tão grande que nunca acertam em remontar sua visão acima das causas puramente humanas para ver os desígnios de Deus em tudo quanto ocorre. Se lhes incomodam – mesmo inadvertidamente –, se irritam e levam tudo por mal. Se um superior lhes corrige algum defeito, em seguida lhe tacham de exigente, tirano e cruel. Se lhes manda alguma coisa que não encaixa com seus gostos, lamentam sua “incompreensão”, sua “distração”, sua completa “inaptidão para mandar”.

 

Se lhes humilha, fazem um escarcéu. Ao seu lado deve proceder com a mesma cautela e precaução com a qual se trataria de uma pessoa mundana inteiramente desprovida de espírito sobrenatural. Não é de estranhar que o mundo ande tão mal quando os que deveriam dar o exemplo andam tantas vezes assim! Não é possível que em tais almas atue jamais o dom de sabedoria. Esse espírito tão imperfeito e humano tem completamente asfixiado o hábito dos dons. Até que não se esforcem um pouco em levantar suas vistas para o céu e, prescindindo das causas segundas, não acertem a ver a mão de Deus em todos os acontecimentos prósperos ou adversos que lhes sucedam, seguirão sempre rastejando pelo solo com sua pobre e penosa vida espiritual. Para aprender a voar, deve-se bater muitas vezes as asas para o alto; pelo preço que for, custe o que custar.

 

b) Combater a sabedoria do mundo, que é estultícia e necedade ante Deus. – A frase é de São Paulo. (1Cor 3, 19.) O mundo chama de Sábios aos néscios ante Deus. (1Cor 1, 25) E como o mundo está cheio desta sorte de estultícia e necedade, por isso nos diz a própria Sagrada Escritura que “é infinito o número de néscios ”( Ecle 1,15.).

 

De fato – escreve o P. Lallemant –, a maior parte dos homens têm o gosto depravado e se lhes pode chamar, com justa razão, de loucos, posto que fazem todas suas ações pondo seu fim último, ao menos praticamente, na criatura e não em Deus. Cada um tem algum objeto ao qual se apega e refere todas as demais coisas, não tendo quase afeição ou paixão, senão dependência desse objeto; e isso é ser verdadeiramente louco.

 

Queremos realmente conhecer se somos do número de Sábios ou néscios? Examinemos nossos gostos e desgostos, seja ante Deus e as coisas divinas, seja entre as criaturas e coisas terrenas. De onde nascem nossas satisfações e dissabores? Em que coisas nosso coração encontra seu repouso e contentamento? Esta sorte de exame é um excelente remédio para adquirir a pureza de coração. Deveríamos nos familiarizar com ele, examinando com frequência durante o dia nossos gostos e desgostos, tratando pouco a pouco de referi-los a Deus.

 

Há três classes de sabedoria reprovadas nas Sagradas Escrituras, (Tg 3, 15) que são outras tantas loucuras verdadeiras: a terrena, que não gosta mais do que das riquezas; a animal, que não apetece mais do que os prazeres do corpo e a diabólica, que põe seu fim em sua própria excelência.

 

E há uma loucura que é verdadeira sabedoria ante Deus: amar a pobreza, o desprezo de si mesmo, as cruzes, as perseguições, o ser louco segundo o mundo. E, no entanto, a sabedoria, que é um dom do Espírito Santo, não é outra coisa senão esta loucura, que não gosta senão do que nosso Senhor e os santos gostaram. Mas Jesus Cristo deixou em tudo quanto tocou em sua vida mortal – como na pobreza, na abjeção, na cruz – um suave odor, um sabor delicioso; mas são poucas as almas que têm os sentidos suficientemente finos para perceber este odor e para degustar este sabor, que são de todo sobrenaturais.

 

Os santos correram para o odor destes perfumes (Ct 1, 3); como um Santo Inácio, que regozijava de se ver menosprezado; um São Francisco, que amava tão apaixonadamente a abjeção, que fazia coisas para cair no ridículo; um São Domingos, que se sentia melhor em Carcasona, onde era extraordinariamente escarnecido, do que em Tolosa, onde todos lhe honravam”.

 

c) Não se afeiçoar em demasia às coisas deste mundo, mesmo que sejam boas e honestas. – A ciência, a arte, a cultura humana, o progresso material das nações, etc., são coisas em si mesmas boas e honestas quando canalizadas e ordenadas retamente. Mas, se nos entregamos a essas coisas com demasiado ardor e afã, não deixarão de nos prejudicar seriamente. Acostumado nosso paladar ao gosto das criaturas, experimentará certa torpeza ou estultícia para saborear as coisas de Deus, tão superiores em tudo.

 

O deixar-se absorver pelo apetite desordenado da ciência - mesmo a sagrada e teológica-, paralisa em sua vida espiritual uma multidão de almas, acarretando com isso uma perda irreparável; perdem o gosto pela vida interior, abandonam e encurtam a oração, se deixam absorver pelo trabalho intelectual e descuidam da coisa “única e necessária” de que nos fala o Senhor no Evangelho. (Lc 10, 42) É uma grande lástima, pois lamentarão no outro mundo, quando não tiverem mais remédio!

 

“Que diferentes – continua o P. Lallemant – são os juízos de Deus em relação ao juízo dos homens! A sabedoria divina é uma loucura a juízo dos homens, e a sabedoria humana é uma loucura a juízo de Deus. A nós cabe ver com qual destes juízos queremos conformar o nosso. É preciso tomar um e outro pela regra de nossos atos. Se gostamos de louvores e de honras, somos loucos nesta matéria; e tanto teremos de loucura quanto tenhamos de gosto em ser estimados e honrados. Como, ao contrário, tanto teremos de sabedoria quanto tenhamos de amor à humilhação e à cruz.

 

É monstruoso que mesmo nas ordens religiosas se encontre pessoas que não gostam mais do que aquilo que possa lhes fazer agradáveis aos olhos do mundo; que não fizeram nada durante os vinte ou trinta anos de vida religiosa senão pra aproximar-se do fim que aspiram; nunca tem alegria ou tristeza senão relacionada a isso, ou, ao menos, são mais sensíveis a isso do que a todas as demais coisas. Tudo o mais que concerne a Deus e à perfeição lhes resulta insípido, não encontram gosto algum nisso.

 

Este estado é terrível e mereceria ser chorado com lágrimas de sangue. Pois, de que perfeição são capazes esses religiosos? Que fruto podem fazer em benefício do próximo? Mas que confusão experimentarão na hora da morte quando se lhes mostre que durante todo o curso de sua vida não tenham buscado nem gostado mais do que o brilho da vaidade, como mundanos! Se estão tristes estas pobres almas, diga-lhes alguma palavra que lhes proporcione alguma esperança de certo engrandecimento, mesmo que falso, e as vereis no mesmo instante mudar de aspecto: seu coração se encherá de gozo, como ante o anúncio de algum grande êxito ou acontecimento.

 

Por outra parte, como não têm o gosto da devoção, não qualificam suas práticas mais do que de bagatelas e de entretenimentos de espíritos débeis. E não somente se governam eles mesmos por estes princípios errôneos da sabedoria humana e diabólica, senão que comunicam ademais seus sentimentos aos outros, ensinando-lhes máximas totalmente contrárias às de nosso Senhor e do Evangelho, do qual tratam de mitigar o rigor pelas interpretações forçadas e conformes às inclinações da natureza corrompida, fundando-se em outras passagens da Escritura mal entendidas, sobre as quais edificam sua ruína”.

 

d) Não apegar-se aos consolos espirituais, mas passar a deus através deles. – Até tal ponto querem Deus unicamente para si, desprendidos de toda a criação, que querem que nos desprendamos até dos próprios consolos espirituais que tão abundantemente, muitas vezes, prodiga na oração. Esses consolos são certamente importantíssimos para nosso adiantamento espiritual, mas unicamente como estímulo e alento para buscar a Deus com maior ardor. Buscá-los para se deter neles e saboreá-los como fim último de nossa oração seria francamente imoral; e mesmo considerados como um fim intermediário, subordinado a Deus, é algo muito imperfeito, do qual é mister purificar-se se queremos passar à perfeita união com Deus.

 

Deve-se estar pronto e disposto a servir a Deus na obscuridade, assim como na luz, na secura assim como nos consolos, na aridez e nos deleites espirituais. Deve-se buscar diretamente a Deus nos consolos e não os consolos de Deus. Os consolos são como o molho ou condimento, que serve unicamente para tornar melhor os alimentos fortes, que nutrem verdadeiramente o organismo; por si só, ela não alimenta e até mesmo pode estragar o paladar, fazendo-lhe insípidas as coisas convenientes quando se apresentam sem ela. Este último é mau, e deve ser evitado a todo custo se queremos que o dom de sabedoria comece a atuar intensamente em nós.

 

Fonte: Fr. Antonio Royo Marín - O Grande desconhecido.