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O Espírito Santo em nós

 

Um dos temas mais santos e sublimes de toda a sagrada teologia: a inabitação do Espírito Santo na alma justificada pela graça.

 

Antes, é preciso ter as ideias muito claras sobre a natureza íntima da graça santificante, que é a base e o fundamento da inabitação do Espírito Santo e de toda a Trindade Beatíssima na alma justificada. Por isso vamos nos deter na exposição dos princípios fundamentais da teologia da graça, mesmo arriscando incorrer em uma pequena digressão, que julgamos necessária, muito prática e proveitosa.

 

I. A graça santificante

 

Exporemos brevemente sua natureza e os principais efeitos que se produz em nossas almas.

 

1. O que é a graça

 

A graça santificante pode ser definida como um dom sobrenatural infundido por Deus em nossas almas, para nos dar uma participação verdadeira e real de sua própria natureza divina, fazernos seus filhos e herdeiros da glória.

 

Vamos explicar a definição palavra por palavra, para captar melhor sua esplendida realidade.

 

a) É um dom.A graça é um imenso presente de Deus, um dom total e absolutamente gratuito que ninguém tem o direito de reclamar desde o ponto de vista natural. Uma vez em possessão gratuita desse imenso dom, já podemos negociar com ele e merecer novos aumentos de graça e a própria glória eterna, como veremos mais abaixo. Porém, antes de possuir a graça, absolutamente ninguém pode merecê-la, mesmo pedindo-a humildemente a Deus com a oração confiada e perseverante. É um belo e consolador aforismo teológico dizer que “a quem faz o que pode (com ajuda da mesma graça proveniente), Deus não lhe nega sua graça”.

 

b) É um dom sobrenatural. Sobrenatural quer dizer que está sobre, por cima da natureza. Tão acima que a graça é uma realidade divina, infinitamente superior a toda a natureza criada ou criável.

 

Com efeito: escalonando o conjunto de todas as criaturas criadas por Deus em seus diferentes graus, conhecidos por nós através da luz natural e pela divina revelação, nos encontramos com os cinco seguintes, do menor ao maior:

 

1° Os minerais. – São de categoria inferior. Existem, porém não vivem.

 

2° Os vegetais. – Vivem, porém não sentem e não entendem.

 

3° Os animais. – Vivem e sentem, porém não entendem e não pensam.

 

4° O homem. – é, como disse São Gregório, uma espécie de microcosmos (um mundo em miniatura), que resume e compendia a todos os demais seres criados: Existe, como os minerais; vive, como os vegetais; sente, como os animais, e entende, como os anjos.

 

5° Os anjos. – Espíritos puros, não têm corpo, nem mescla alguma de matéria. São, por isso, naturalmente superiores ao homem, posto que estão mais próximos do próprio ser de Deus.

 

A qual desses graus ou categorias pertence a graça habitual ou santificante? A nenhum deles, posto que os transcende e os rebaixa a todos. A graça, como explicaremos em seguida, é uma realidade divina que, por isso mesmo, pertence ao plano da divindade e está mil vezes acima de todos os seres criados, incluindo os próprios anjos. É uma realidade absolutamente sobrenatural, ou seja, que está acima, que rebaixa e transcende toda a natureza criada ou criável. Por isso, a menor participação da graça santificante vale infinitamente mais do que a criação universal inteira, ou seja, que todo o conjunto dos seres criados por Deus que existiram, existem e existirão até o fim dos séculos.

 

c) Infundido por Deus. – Somente Deus, autor da ordem sobrenatural, pode infundi-la na alma. Todas as criaturas juntas do universo jamais poderão produzir a mais mínima participação da natureza mesma de Deus, que é precisamente, o que nos comunica a graça santificante.

 

d) Em nossas almas. – A graça é uma realidade espiritual que radica na alma, não no corpo. Por ser espiritual, não pode ser vista com os olhos, nem ser tocada ou ouvida. Tampouco se pode ver ou tocar um pensamento, nem o amor, e, entretanto, não deixa de ser uma autêntica realidade que pensamos e amamos.

 

e) Para nos dar uma participação, verdadeira e real, de sua própria natureza divina. – É a primeira e maior prerrogativa da graça de Deus, que explicaremos detalhadamente mais abaixo ao falar dos efeitos da graça em nossas almas.

 

f) Nos faz verdadeiros filhos de Deus. – É uma consequência necessária do fato de que a graça santificante nos faz participantes da natureza mesma de Deus. Sem essa participação, seriamos tão somente criaturas de Deus, mas de nenhuma maneira seus filhos.

 

Com efeito, para ser pai, é preciso transmitir a outro ser a sua própria natureza específica. O escultor que esculpe uma estátua não é o pai daquela obra inanimada, senão unicamente o autor. Por outro lado, os autores de nossos dias são verdadeiramente nossos pais na ordem natural, porque nos transmitiram realmente, por via de geração, sua própria natureza humana.

 

É certo que Deus não nos transmite pela graça sua própria natureza divina por geração natural – como a transmite o Pai ao Filho no seio da Trindade Beatíssima –, senão em forma parcial e por via de adoção, não natural. Mas devemos nos guardar de crer que esta adoção divina por meio da graça é da mesma natureza que as adoções humanas: de maneira alguma. Quando uma criança órfã de pai e mãe é adotada legalmente por uma família caritativa, recebe dela uma série de bens e vantagens, entre as quais se destacam o sobrenome da família adotante e o direito aos bens que se lhe abona em herança. Mas há algo que não lhe dão e que jamais poderão lhe dar: o sangue da família. Essa pobre criança tem o sangue que recebeu de seus pais naturais, mas de modo algum o de seus pais adotivos. No entanto, quando Deus nos adota pela graça, não só nos dá o sobrenome da família divina – filhos de Deus – e o direito à futura herança – o céu –, senão que nos comunica de forma muito real e verdadeira sua própria natureza divina.

 

Empregando uma linguagem metafórica – posto que Deus não tem sangue –, mas que encerra no fundo uma realidade sublime, poderíamos dizer que a graça é uma transfusão de sangue em nossas almas. Em virtude dessa divina transfusão, deste enxerto divino, a alma se faz de tal modo participante da vida mesma de Deus, que não só nos dá direito de chamarmo-nos filhos de Deus, mas também nos faz seus filhos efetivamente. Por isso exclama estupefato o evangelista São João: “Considerai com que amor nos amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos de fato”(1Jo 3, 1) .

 

E o apóstolo São Paulo escreve em sua carta aos Romanos: “Porquanto não recebestes um espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba! Pai! O Espírito mesmo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus. E, se filhos, também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo” (Rm 8, 15-17).

 

Pela graça somos, pois, verdadeiramente filhos de Deus por adoção, mas por uma espécie de adoção intrínseca, que nos incorpora realmente à família de Deus em qualidade de verdadeiros filhos.

 

g) Nos faz herdeiros do céu. – É outra conseqüência natural e obrigatória de nossa filiação divina adotiva. Nos recorda São Paulo nas palavras que acabamos de citar: “E, se filhos, também herdeiros” (Rm 8, 17).

 

Mas quão diferente é também a filiação adotiva da graça das adoções legais e puramente humanas! Entre os homens, os filhos não herdam senão quando morre o pai, e tanto é menor a herança quanto maior o número de herdeiros. Mas nosso Pai vive e viverá eternamente, e com Ele possuiremos uma herança tal que, apesar do imenso número de participantes, não experimentará jamais a menor míngua ou diminuição. Porque esta herança, ao menos nos seus principais aspectos, é rigorosamente infinita.

 

É o próprio Deus, uno em essência e trino em pessoas, contemplado, amado e gozado com deleites inefáveis e embriagantes, que nesta vida terrena não podemos nem sequer imaginar. Nos serão comunicadas todas as riquezas internas da divindade, tudo o que constitui a felicidade mesma de Deus e lhe proporciona um gozo infinito e eterno: são as perfeições insondáveis da divindade. Finalmente, Deus porá à nossa disposição todos seus bens exteriores: sua honra, sua glória, seus domínios, sua realeza e todos os bens criados que existem no universo inteiro: “Tudo é vosso –disse São Paulo –, e vós sois de Cristo, e Cristo de Deus” (1Cor 3, 22-23). Tudo isto proporcionará à alma uma felicidade e alegrias inexplicáveis, que culminará plenamente, em abundancia transbordante, todas suas aspirações e anelos.

 

E tudo isso receberá a alma em graça como herança devida a título de justiça: tem direito a isso. A graça – como já explicamos mais acima – é inteiramente gratuita, um dom imenso de Deus que ninguém absolutamente pode merecer desde o ponto de vista puramente natural; mas, uma vez possuída, nos dá a capacidade para merecer o céu a título de justiça. Há um perfeito paralelismo e correspondência entre a graça e o céu, como há também entre o pecado mortal e o inferno. A graça é como o céu em potência. Não há entre a graça e o céu mais do que uma diferença de grau, não essencial: é a própria vida sobrenatural em estado inicial ou em estado consumado. A criança não difere especificamente do homem maduro: é um adulto em gérmen. Isso mesmo ocorre com a graça e com a glória. Por isso pôde escrever São Tomás com toda exatidão teológica que “a graça não é outra coisa senão um começo da glória em nós”.

 

2. Efeitos da graça santificante

 

a) Nos diviniza fazendo-nos participantes da natureza mesma de Deus. – é o primeiro e maior dos efeitos que a graça santificante produz em nossas almas, a raiz e fundamento de todos os demais.

 

Poderíamos apenas crer, se não constasse na divina revelação. O apóstolo São Pedro disse que Deus nos fez entrar “na posse das maiores e mais preciosas promessas, a fim de tornar-vos por este meio participantes da natureza divina” (2Pe 1, 4). Os Santos Padres e mesmo a exegese moderna viram nessas palavras uma clara e manifesta alusão à graça santificante. E a Igreja exclama jubilosa em sua liturgia oficial: “Cristo subiu aos céus, a fim de nos tornar participantes de sua divindade”.

 

Isso significaria que o homem se faz substancialmente divino pela graça no sentido panteísta da expressão? Afirmar isso seria um grande erro e uma verdadeira heresia. Não é e nem pode haver uma mudança substancial da natureza humana na substância divina. Trata-se unicamente de uma participação analógica e acidental em virtude da qual, o homem, sem deixar de ser tal, se faz participante da divina natureza na medida em que é possível a uma simples criatura. Os Santos Padres costumam utilizar a imagem de um ferro colocado em uma forja: o ferro não perde com isso sua própria natureza de ferro, mas adquire propriedades do fogo e se torna incandescente como ele.

 

De maneira semelhante, a alma, ao receber a graça de Deus, continua sendo substancialmente uma alma humana, porém recebe uma verdadeira e real participação da natureza mesma de Deus, porque a graça a torna capaz de conhecer e amar a Deus tal como Ele se conhece e ama; e como a natureza de Deus consiste precisamente em conhecer e amar ao divino, participar deste conhecimento e amor é participar real e verdadeiramente de sua própria natureza divina. A alma em estado de graça se assemelha a Deus precisamente enquanto Deus, ou seja, não tão somente enquanto ser vivo e inteligente, mas naquilo que faz com que Deus seja Deus e não outra coisa, em sua mesmíssima divindade. É impossível a uma criatura, humana ou angélica, escalar uma altura maior do que aquela a que é elevada pela graça santificante, se excetuarmos a união pessoal ou hipostática, que é própria e exclusiva de Cristo.

 

A dignidade de uma alma em estado de graça é tão grande, que ante ela se desvanecem como fumaça todas as grandezas da terra. Que significa toda a criação ante um mendigo coberto de andrajos, que no entanto leva em sua alma o tesouro da graça santificante? Há mais distância entre esse mendigo e uma alma em pecado mortal (que carece da graça) do que aquela existente entre esse mendigo em estado de graça e o maior dos santos canonizados, incluindo a que há entre ele e a Santíssima Virgem Maria. A que altura tão egrégia nos eleva a simples possessão da graça santificante! Nos faz rebaixar as fronteiras de toda a criação natural, fazendo-nos alcançar, em seu voo de águia, o plano mesmo da divindade: ao próprio Deus tal como é em si mesmo.

 

O demônio prometeu a nossos primeiros pais no paraíso que, se comessem da árvore proibida, seriam como deuses (Gn 3, 5).  “É Jesus Cristo – disse Malebranche – quem, por meio da graça, cumpre em nós a magnífica promessa do demônio” (Catecismo dos incrédulos [Barcelona 1934] p.211).

 

b) Nos faz irmãos de cristo e co-herdeiros com Ele. – É a terceira afirmação de São Paulo no texto da epístola aos Romanos que citamos mais acima: “herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo” (Rm 8, 17). E esta relação deriva imediatamente das outras duas anteriores. Porque, como disse Santo Agostinho, “aquele que diz Pai nosso ao Pai de Cristo, que lhe diz a Cristo? Irmão nosso?”.

 

Pelo fato mesmo de que a graça santificante nos comunica uma participação da vida divina que Cristo possui em toda sua plenitude, é forçoso que venhamos a ser irmãos do próprio Cristo. Quis se fazer nosso irmão segundo a humanidade “a fim de nos tornar participantes da sua divindade”. Deus nos predestinou – afirma São Paulo – para sermos “conformes à imagem de seu Filho, a fim de que este seja o primogênito entre uma multidão de irmãos” (Rm 8, 29). Certamente, não somos irmãos de Cristo segundo a natureza, nem somos filhos de Deus da mesma forma que Ele o é. Cristo é o primogênito entre seus irmãos, mas também é o Filho unigênito do Pai. Pela ordem natural Ele é o Filho único; mas na ordem da adoção e da graça é nosso irmão mais velho, ao mesmo tempo nossa Cabeça e a causa de nossa saúde.

 

Por essa razão, o Pai se digna a olhar-nos como se fossemos uma mesma coisa com seu Filho. Nos ama como ama a Ele, o tem por nosso irmão e nos confere um título a sua própria herança. Somos co-herdeiros de Cristo. Ele tem direito natural à herança divina, já que é o Filho “a quem constituiu herdeiro universal, pelo qual criou todas as coisas” (Hb 1, 2). Neste caso: “Aquele para quem e por quem todas as coisas existem, desejando conduzir à glória numerosos filhos, deliberou elevar à perfeição, pelo sofrimento, o autor da salvação deles, para que santificador e santificados formem um só todo. Por isso, (Jesus) não hesita em chamá-los seus irmãos, dizendo: Anunciarei teu nome a meus irmãos, no meio da assembleia cantarei os teus louvores” (Hb 2, 10-12). Por essa causa, esses irmãos de Cristo hão de compartilhar com Ele o amor e a herança do Pai celestial. Deus nos modelou sobre Cristo; nós somos com Ele os filhos de um mesmo Pai que está nos céus. Definitivamente, tudo acabará, realizando-se o supremo anelo de Cristo: que sejamos uno com Ele, como Ele é uno com seu Pai celestial (Jo 17, 21-24).

 

c) Nos infunde as virtudes infusas e os dons do espírito santo. – A graça santificante é uma qualidade sobrenatural que se infunde na essência mesma de nossa alma como um elemento estático, habitual, não imediatamente operativo. Para operar sobrenaturalmente, como exige nossa elevação à ordem sobrenatural pela mesma graça, necessitamos de algumas faculdades operativas de ordem estritamente sobrenatural que nos capacitem para realizar de maneira co-natural e sem esforço os atos sobrenaturais próprios de nossa condição de filhos de Deus. Tais são as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo, que se infundem em nós sempre juntamente com a graça santificante, da qual são inseparáveis (Com exceção da fé e da esperança, que podem subsistir sem a graça, embora de maneira informe, ou seja, sem vitalidade alguma de ordem meritória sobrenatural) e da qual constituem seu elemento operativo ou dinâmico. 

 

II. A inabitação trinitária na alma

 

A graça santificante, como já dissemos, nos dá uma verdadeira e real participação da natureza mesma de Deus, e neste sentido pode-se chamar divina com toda a propriedade e exatidão. No entanto, é evidente que ela não é o próprio Deus, mas uma realidade criada por Deus para fazernos participantes de sua própria natureza divina de um modo misterioso, embora muito real e verdadeiro.

 

Porém, esta realidade criada que é a graça santificante, leva sempre consigo, inseparavelmente, outra realidade absolutamente divina e incriada, que não é outra coisa senão o próprio Deus, uno e trino, que vem inabitar no fundo de nossas almas.

 

Vamos estudar esta realidade augusta com a máxima amplitude que nos permite os limites de nossa obra.

 

1. existência. – A inabitação da Santíssima Trindade na alma do justo é uma das verdades mais claramente manifestadas no Novo Testamento (Como é sabido, ainda que no Antigo Testamento haja alguns rastros e vestígios do mistério trinitário – sobretudo na doutrina do “Espírito de Deus”e da “Sabedoria”- a plena revelação do mistério da vida íntima de Deus estava reservada ao Novo Testamento). Com insistência, mostra bem às claras a importância soberana deste mistério, voltando o sagrado texto uma vez e outra a nos inculcar esta sublime verdade. Recordemos alguns dos testemunhos mais insignes:

 

“Se alguém me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos nossa morada” (Jo 14, 23).

 

“Nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem para conosco. Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele” (1Jo 4, 16).

 

“Não sabeis que sois o templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá. Porque o templo de Deus é sagrado - e isto sois vós”(1Cor 3, 16-17).

 

“Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, o qual recebestes de Deus e que, por isso mesmo, já não vos pertenceis?” (1Cor 6, 19).

 

“Porque somos o templo de Deus vivo”( 2Cor 6, 16).

 

“Guarda o precioso depósito, pela virtude do Espírito Santo que habita em nós”(2Tm 1, 14).

 

Como se vê, a Sagrada Escritura emprega diversas fórmulas para expressar a mesma verdade: Deus habita dentro da alma em estado de graça. Preferencialmente, se atribui essa inabitação ao Espírito Santo, não porque caiba uma presença especial do Espírito Santo que não seja comum ao Pai e o Filho, mas por uma muito conveniente apropriação, já que é esta a grande obra de amor de Deus ao homem e é o Espírito Santo o Amor essencial no seio da Santíssima Trindade.

 

Os Santos Padres, sobretudo Santo Agostinho, escreveram páginas belíssimas comentando o inefável fato da inabitação divina na alma do justo.

 

2. Natureza. – Muito foi escrito e discutido pelos teólogos acerca da natureza da inabitação das divinas pessoas na alma do justo. As opiniões são muitas, embora nenhuma delas nos dê uma explicação inteiramente satisfatória do modo misterioso como se realiza a presença real das pessoas divinas na alma do justo. Em todo caso, para a vida de piedade e avanço na perfeição, mais do que o modo como se realiza, nos interessa o fato da habitação em si mesma, no qual estão absolutamente de acordo todos os teólogos católicos.

 

Vamos assinalar em que se distingue a presença da inabitação das outras presenças de Deus que assinalam a teologia.

 

Pode-se distinguir, com efeito, até cinco presenças de Deus completamente distintas:

 

1° Presença pessoal e hipostática.– É a presença própria e exclusiva de Jesus Cristo Homem. N’Ele, a pessoa divina do Verbo não reside como em um templo, senão que constitui sua própria personalidade, mesmo enquanto homem. Em virtude da união hipostática, Cristo-homem é uma pessoa divina e de nenhum modo uma pessoa humana.

 

2° Presença eucarística.Na Eucaristia, Deus está presente de uma maneira especial, que somente se dá nela. É o ubi eucarístico que, mesmo de uma maneira direta e imediata afeta o corpo de Cristo, afeta também indiretamente as três divinas pessoas da Santíssima Trindade: ao Verbo por sua união pessoal com a humanidade de Cristo, ao Pai e ao Espírito Santo pela circum-incessão ou presença mútua das três divinas pessoas entre si, que faz delas absolutamente inseparáveis.

 

3° Presença de visão.– Deus está presente em todas as partes – como veremos em seguida –, mas não em todas Ele se deixa ver. A visão beatífica no céu pode ser considerada como uma presença especial de Deus distinta das demais. No céu está Deus deixando-se ver.

 

4° Presença de imensidade.– Um dos atributos de Deus é sua imensidade, em virtude da qual Deus está realmente presente em todas as partes, sem que possa existir criatura ou lugar algum onde não se encontre Deus. E isto por três capítulos:

 

a) por essência, enquanto que Deus está dando o ser a tudo quanto existe sem descansar um só instante, de maneira parecida a uma usina elétrica que manda energia sem cessar e mantém acesa a lâmpada. Se Deus suspendesse um só instante sua ação conservadora sobre qualquer ser, esse ser desapareceria ipso facto no nada, como a lâmpada elétrica que se apaga instantaneamente quando cortamos sua corrente. Neste sentido, Deus está mais presente inclusive na alma em pecado mortal e no próprio demônio, que não poderiam existir sem essa presença divina.

 

b) por presença, enquanto que Deus tem continuamente diante de seus olhos todos os seres criados, sem que nenhum deles possa subtrair-se um só instante de Sua visão divina.

 

c) por potência, enquanto que Deus tem submetidas ao seu poder todas as criaturas. Com uma só palavra as criou e somente com uma poderia aniquilá-las.

 

5° Presença de inabitação. – É a presença especial que estabelece Deus, uno e trino, na alma justificada pela graça.

 

Em que se distingue esta presença de inabitação da presença geral de imensidade?

 

Antes, é preciso esclarecer que a presença especial de inabitação exige e pressupõe a presença geral por imensidade, sem a qual não seria possível. Porém acrescenta a esta presença geral duas coisas fundamentais: a paternidade e a amizade divinas; a primeira, fundada na graça santificante, e a segunda na caridade.

 

Expliquemos um pouco estas realidades inefáveis.

 

a) a paternidade. – Como já dissemos da graça santificante, propriamente falando, não se pode dizer que Deus seja Pai das criaturas na ordem puramente natural. É verdade que todas saíram de suas mãos criadoras, mas esse feito constitui a Deus como Autor ou Criador de todas elas, porém de maneira alguma faz de Deus o Pai das mesmas. O artista que esculpe uma estátua em um pedaço de madeira ou de mármore é o autor da estátua, mas de maneira alguma seu pai. Para ser pai é preciso transmitir a própria vida, ou seja, a própria natureza específica a outro ser vivente da mesma espécie.

 

Por isso, se Deus quisesse ser nosso Pai além de nosso criador, seria preciso nos transmitir sua própria natureza divina em toda sua plenitude – e este é o caso de Jesus Cristo, Filho de Deus por natureza – ou, ao menos, uma participação real e verdadeira da mesma: e este é o caso da alma justificada. Em virtude da graça santificante, que nos dá uma participação misteriosa, embora muito real e verdadeira da própria natureza divina, a alma justificada se faz verdadeiramente filha de Deus, por uma adoção intrínseca muito superior às adoções humanas, puramente jurídicas e extrínsecas.

 

E desde esse momento, Deus, que já residia na alma por sua presença geral de imensidade, começa a estar nela como Pai e vê-la como verdadeira filha sua. Este é o primeiro aspecto da presença de inabitação, incomparavelmente superior, como se vê, à simples presença de imensidade. A presença de imensidade é comum a tudo quanto existe (inclusive às pedras e aos próprios demônios). A inabitação, no entanto, é própria e exclusiva dos filhos de Deus. Supõe sempre a graça santificante e, por isso mesmo, não se poderia dar sem ela.

 

b) a amizade. – Mas a graça santificante nunca está só. Leva consigo o maravilhoso cortejo das virtudes infusas, entre as quais se destaca como a mais importante e principal a caridade sobrenatural. A caridade estabelece uma verdadeira e mútua amizade entre Deus e os homens: é sua própria essência. Por isso, ao se infundir na alma, juntamente com a graça santificante e a caridade sobrenatural, Deus começa a estar nela de uma maneira inteiramente nova: já não está simplesmente como autor, mas também como verdadeiro amigo. Eis aí o segundo aspecto intrínseco da divina inabitação.

 

Presença íntima de Deus, uno e trino, como Pai e Amigo. Este é o feito colossal, que constitui a essência da inabitação da Santíssima Trindade na alma justificada pela graça e pela caridade.

 

3. Finalidade. – A inabitação trinitária possui uma finalidade altíssima em nossas almas, como não poderia deixar de ser. É o grande dom de Deus, o primeiro e maior de todos os dons possíveis, posto que nos dá a posse real e verdadeira do próprio ser infinito de Deus. A própria graça santificante, por ser um dom de valor incalculável, vale infinitamente menos do que a divina inabitação. Esta última recebe em teologia o nome de graça incriada, diferente da graça habitual ou santificante, que se designa com o nome de graça criada. Há um abismo entre uma criatura –por mais perfeita que seja – e o próprio Criador.

 

No cristianismo, a inabitação equivale à união hipostática na pessoa de Cristo, embora não a seja, senão a graça habitual que nos constitui formalmente como filhos adotivos de Deus. A graça santificante penetra e embebe formalmente nossa alma divinizando-a. Mas a divina inabitação é como a encarnação ou inserção em nossas almas do absolutamente divino: do próprio ser de Deus tal como é em si mesmo, um em essência e trino em pessoas.

 

Duas são as principais finalidades da divina inabitação em nossas almas:

 

A Santíssima Trindade inabita em nossas almas para fazer de nós participantes de sua vida íntima divina e nos transformar em Deus.

 

A vida íntima de Deus consiste, como já dissemos, na processão das pessoas divinas – o Verbo, do Pai por via de geração intelectual; e o Espírito Santo, do Pai e do Filho por via de procedência afetiva – e na infinita complacência que neles experimentam as divinas pessoas entre si.

 

Ora, por incrível que pareça esta afirmação, a inabitação trinitária em nossas almas tende, como meta suprema, a nos fazer participantes do mistério da vida íntima divina, associando-nos a Ele e transformando-nos em Deus, na medida em que é possível a uma simples criatura. Escutemos a São João da Cruz – doutor da Igreja universal – explicando esta incrível maravilha:

 

Este aspirar da brisa é uma capacidade que, segundo a própria alma o diz, lhe será dada por Deus, na comunicação do Espírito Santo. É este que, a modo de sopro, com sua aspiração divina, levanta a alma com grande sublimidade, penetrando-a e habilitando-a a aspirar, em Deus, aquela mesma aspiração de amor com que o Pai aspira no Filho, e o Filho no Pai, e que não é outra coisa senão o próprio Espírito Santo. Nesta transformação, o divino Espírito aspira a alma, no Pai e no Filho, a fim de uni-la a Si na união mais íntima. Se a alma, com efeito, não se transformasse nas três divinas Pessoas da Santíssima Trindade, num grau revelado e manifesto, não seria verdadeira e total a sua transformação.

 

Essa aspiração do Espírito Santo na alma, com que Deus a transforma em Si, causa-lhe tão subido, delicado e profundo deleite, que não há linguagem mortal capaz de o exprimir; nem o entendimento humano, com a sua natural habilidade, pode conceber a mínima ideia do que seja. Na verdade, mesmo o que se passa na transformação a que a alma chega nesta vida, é indizível; porque a alma, unida e transformada em Deus, aspira, em Deus, ao próprio Deus, naquela mesma aspiração divina com que Deus aspira em Si mesmo à alma já toda transformada n’Ele... Não é, pois, coisa impossível chegar a alma a atingir tão grande altura, aspirando em Deus, por participação, como Ele mesmo nela aspira.

 

Se Deus, de fato, lhe concede a graça de ser unida à Santíssima Trindade, tornando-se a alma assim deiforme e Deus por participação, como podemos achar incrível que ela tenha em Deus todo o seu agir, quanto ao entendimento, notícia e amor, ou, melhor dizendo, sejam suas operações todas feitas na Santíssima Trindade, juntamente com Ela, como a mesma Santíssima Trindade? Assim o é, porém, por participação e Comunicação, sendo Deus quem opera na alma. Nisto consiste a transformação da alma nas três divinas Pessoas, em poder, sabedoria e amor; nisto também torna-se a alma semelhante a Deus, e para chegar a este fim é que foi criada à Sua imagem e semelhança...

 

Oh! Almas criadas para estas grandezas, e a elas chamadas! Que fazeis? Em que vos entretendes? Baixezas são vossas pretensões e tudo quanto possuís não passa de misérias. Oh! miserável cegueira dos olhos de vosso espírito! Pois para tanta luz estais cegas; para tão altas vozes, sois surdas; não vedes que, enquanto buscais grandezas e glórias, permaneceis miseráveis e vis, sendo ignorantes e indignas de tão grandes bens!.

 

Até aqui a citação de São João da Cruz. Realmente, o apóstrofe final do sublime místico está plenamente justificado. Ante a perspectiva soberana de nossa total transformação em Deus, o Cristo deveria desprezar radicalmente todas as misérias da terra e dedicar-se com ardor incontido e intensificar cada vez mais sua vida trinitária até se remontar pouco a pouco aos mais altos cumes da união mística com Deus.

 

Que não se pense, no entanto, que essa total transformação em Deus de que falam os místicos experimentais como coroamento supremo da inabitação trinitária tem um sentido panteísta de absorção da própria personalidade na torrente da vida divina. Nada mais distante disso. A união panteísta não é propriamente união, senão uma negação absoluta da união, posto que um dos termos – a criatura – desaparece ao ser absorvida por Deus. A união mística não é isso. A alma transformada em Deus não perde jamais sua própria personalidade criada. São Tomás coloca como exemplo, extraordinariamente gráfico e expressivo, do ferro incandescente, que, sem perder sua própria natureza, adquire as propriedades do fogo e se faz fogo por participação.

 

Comentando essa divina transformação com base na imagem do ferro incandescente, escreve com acerto o P. Ramière: (Enrique Ramère, S.I. El Corazón de Jesús y la divinización del Cristiano (Bilbao 1936) c. 229-30.)

 

É verdade que no ferro abrasado está a semelhança do fogo, mas não é tal que o mais hábil pintor possa reproduzi-la servindo-se das cores mais vivas; ela não pode resultar senão da presença e ação do próprio fogo. A presença do fogo e a combustão do ferro são duas coisas distintas; pois esta é uma maneira de ser do ferro e aquela uma relação do mesmo com uma substância estranha. Mas as duas coisas, por mais distintas que sejam, são inseparáveis uma da outra; o fogo não pode estar unido ao ferro sem que esse lhe abrase e a combustão do ferro não pode resultar senão de sua união com o fogo.

 

Assim, a alma justa possui em si mesma uma santidade distinta do Espírito Santo; mas ela é inseparável da presença do Espírito Santo nessa alma, e, portanto, é infinitamente superior à mais elevada santidade que possa alcançar uma alma na qual não mora o Espírito Santo. Esta última alma não poderia ser divinizada senão moralmente, pela semelhança de suas disposições com as de Deus; o cristianismo, pelo contrário, é divinizado fisicamente e, em certo sentido, substancialmente, posto que sem se converter em uma mesma substância e em uma mesma pessoa com Deus, possui em si a substância de Deus e recebe a comunicação de sua vida.

 

A Santíssima Trindade inabita em nossas almas para nos dar a plena possessão de Deus e o gozo fruitivo das divinas pessoas.

 

Duas coisas estão contidas nessa conclusão, as quais examinaremos separadamente:

 

a) para nos dar a plena possessão de Deus. Dizíamos, ao falarmos da presença divina de imensidade que, em virtude da mesma, Deus estava intimamente presente em todas as coisas – inclusive nos próprios demônios do inferno – por essência, presença e potência. E, no entanto, um ser que não tenha com Deus outro contato além daquele que provém unicamente desta presença de imensidade, propriamente falando não possui a Deus, posto que este tesouro infinito não lhe pertence de modo algum.

 

Escutemos novamente ao P. Ramière:

 

Podemos imaginar a um paupérrimo junto a um imenso tesouro, sem que se faça rico por estar próximo dele, pois o que faz a riqueza não é a proximidade, mas a posse do ouro. Tal é a diferença entre a alma justa e a alma do pecador. O pecador, o próprio condenado, têm ao seu lado e em si mesmo o bem infinito e, não obstante, permanecem em sua indigência, porque este tesouro não lhes pertence; ao passo que o cristão em estado de graça tem em si o Espírito Santo, e com Ele a plenitude das graças celestiais como um tesouro que lhe pertence em propriedade e do qual pode usar quando e como lhe pareça.

 

Como é grande a felicidade do cristão! Que verdade, bem entendida por nosso entendimento, para alargar nosso coração! Que influxo em nossa vida inteira se a tivéssemos constantemente ante nossos olhos! A persuasão que temos da presença real do corpo de Jesus Cristo no cibório nos inspira o mais profundo horror à profanação desse recipiente de metal. Que horror teríamos também à menor profanação de nosso corpo se não perdêssemos de vista este dogma de fé, tão certo como o primeiro, ou seja, a presença real em nós do Espírito de Jesus Cristo! É por ventura o divino Espírito menos santo que a carne sagrada do Homem-Deus? Ou pensamos que dá Ele à santidade desses recipientes de ouro e templos materiais mais importância que à santidade de seus templos vivos e tabernáculos espirituais?

 

Nada deveria causar tanto horror ao cristão como a possibilidade de perder este tesouro divino por causa do pecado mortal. As maiores calamidades e desgraças que possamos imaginar no plano puramente humano e temporal – enfermidades, calúnias, perda de todos os bens materiais, morte dos entes queridos, etc. – são brincadeira e dignas de riso comparadas à terrível catástrofe que representa para a alma um só pecado mortal. Aqui a perda é absoluta e rigorosamente infinita.

 

b) para nos dar o gozo fruitivo das pessoas divinas. – Por mais assombrosa que possa parecer tal afirmação, é esta uma das finalidades mais entranháveis da divina inabitação em nossas almas.

 

O príncipe da teologia católica, São Tomás de Aquino, escreveu em sua Suma Teológica estas surpreendentes palavras:

 

Não se diz que possuímos senão aquilo de que livremente podemos usar e desfrutar. Ora, somente pela graça santificante temos a possibilidade de desfrutar da pessoa divina (“potestatem fruendi divina persona”).

 

Pelo dom da graça santificante a criatura racional é aperfeiçoada, não só para usar livremente daquele dom criado, senão para gozar da própria pessoa divina (“ut ipsa persona divina fruatur”)”.

 

Os místicos experimentais comprovaram na prática a profunda realidade destas palavras. Santa Catarina de Siena, Santa Teresa, São João da Cruz, Santa Elisabete da Trindade e muitos outros falam de experiências trinitárias inefáveis. Muitas vezes, suas descrições desconcertam aos teólogos especulativos, demasiadamente aficionados em medir as grandezas de Deus com a estreiteza da pobre razão humana, ainda que iluminada pela fé. (Na realidade, as discrepâncias entre teólogos e místicos são mais aparentes do que reais. A experiência mística, por sua própria inefabilidade, não é apta para ser expressa com os pobres conceitos humanos. Daí que os místicos se vejam constrangidos a empregar uma linguagem inadequada que, à luz da simples razão natural, parece excessiva e inexata, quando na verdade está ainda muito abaixo da experiência inefável que trata de expressar. Vide, por exemplo, o texto de São João da Cruz que citaremos imediatamente.)

 

Escutemos alguns testemunhos explícitos dos místicos experimentais:

 

Santa Teresa. “O nosso bom Deus quer já tirar-lhe as escamas dos olhos, bem como que veja e entenda algo da graça que lhe é concedida – embora isso se efetue de modo um tanto estranho."

 

Introduzida a alma nesta morada, mediante visão intelectual se lhe mostra, por certa espécie de representação da verdade, a Santíssima Trindade – Deus em três Pessoas: Primeiro lhe vem ao espírito uma inflamação que se assemelha a uma nuvem de enorme claridade. Ela vê então nitidamente a distinção das divinas Pessoas; por uma noticia admirável que lhe é infundida, entende com certeza absoluta serem as três uma substância, um poder, um saber, um só Deus.

 

Dessa maneira, o que acreditamos por fé é entendido ali pela alma por vista, se assim podemos dizer, embora não seja vista dos olhos do corpo, nem da alma, porque não se trata de visão imaginária. Na sétima morada, comunicam-se com ela e lhe falam as três Pessoas. Elas lhe dão a entender as palavras do Senhor que estão no Evangelho: que viria Ele, com o Pai e o Espírito Santo, para morar na alma que O ama e segue Seus mandamentos.

 

Oh! Valha-me Deus! Ouvir essas palavras e crer nelas é uma coisa; entender a sua verdade pelo modo de que falo é algo inteiramente diverso! E cada dia se espanta mais essa alma, porque lhe parece que as três Pessoas nunca mais se afastaram dela. Pelo contrário, vê nitidamente – do modo que dissemos – que estão em seu interior. E, no mais íntimo de si, num lugar muito profundo – que ela não sabe especificar, porque é ignorante -, percebe em si essa divina companhia. (Santa Teresa, Moradas séptimas 1,6-7.)

 

São João da cruz. – Já citamos na conclusão anterior um texto extraordinariamente expressivo. Ouçamos o Santo ponderar o deleite inefável que a alma experimenta em sua sublime experiência trinitária:

 

“Daí a delicadeza inexprimível do deleite sentido neste toque; nem queria eu falar nisso, para não se pensar que é apenas como eu digo, e não mais. Na verdade, não há termos capazes de declarar coisas tão subidas de Deus, como as que se passam nestas almas; por isto, a linguagem própria é somente entender dentro de si, e sentir no íntimo, calando e gozando quem o recebe (...) E assim, verdadeiramente, só se pode dizer que “a vida eterna sabe”. Embora nesta vida não se goze perfeitamente deste toque como na glória, contudo, por ser toque de Deus, a vida eterna sabe”. (São João da Cruz, Llama de amor viva canc. 2 n.21.)

 

Santa Elisabete da Trindade. – “Eis aqui como entendo ser a “casa de Deus”: vivendo no seio da tranquila Trindade, em meu abismo interior, nesta fortaleza inexpugnável do santo recolhimento, de que fala São João da Cruz.

 

Davi cantava “Minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor”. (182. Sl 83, 3.) Me parece que esta deve ser a atitude de toda alma que se recolhe em seus átrios interiores para contemplar ali a seu Deus e se colocar em contato estreitíssimo com Ele. Sente-se desfalecer em um divino desvanecimento ante a presença deste Amor onipotente, desta majestade infinita que mora nela. Não é a vida quem a abandona, é ela quem despreza esta vida natural e quem se retira, porque sente que não é digna de sua essência tão rica, e que vai morrer e desaparecer em seu Deus”. (Sor Isabel de la Trinidad, Ultimo retiro de “Laudem gloriae”. Dia 16. Pode-se consultar em Philipon, La doctrina espiritual de sor Isabel de la Trinidad, ao final.)

 

Esta é, em toda sua sublime grandeza, uma das finalidades mais profundas da inabitação da Santíssima Trindade em nossas almas: nos dar uma experiência inefável do grande mistério trinitário, como uma antecipação da bem-aventurança eterna. As pessoas divinas se entregam à alma para que gozemos delas, segundo a assombrosa terminologia do Doutor Angélico, plenamente comprovada na prática pelos místicos experimentais. E mesmo que esta inefável experiência constitua, sem dúvida alguma, o grau mais elevado e sublime da união mística com Deus, não representa, no entanto, um favor de tipo “extraordinário” como nas graças “grátis dadas”; entra, pelo contrário, no desenvolvimento normal da graça santificante, e todos os cristão estão chamados a estas alturas, e a elas chegariam, efetivamente, se fossem perfeitamente fiéis à graça e não paralisassem com suas contínuas resistências a ação santificadora e progressiva do Espírito Santo. Escutemos a Santa Teresa proclamando abertamente esta doutrina:

 

Vede que o Senhor convida a todos. Ele é a própria verdade, não há porque duvidar. Se esse convite não fosse geral, Ele não nos chamaria a todos e, mesmo que chamasse, não diria: Eu vos darei de beber. Ele poderia dizer: “Vinde todos porque, afinal, não podereis nada; e darei de beber a quem eu quiser”. Mas como Ele disse, sem impor essa condição, “a todos”, tenho por certo que não faltará dessa água viva a todos quantos não ficarem pelo caminho”. (Santa Teresa, Camino de perfección 19,15; cf. São João da Cruz, Llama canc.2 v.27.)

 

Vale a pena, pois, fazer de nossa parte tudo quanto pudermos para nos dispor, com a graça de Deus, a gozar, ainda neste mundo, desta inefável experiência trinitária. Os meios mais importantes para nos dispormos a isso são: fé viva, caridade ardente, recolhimento profundo e atos fervorosos de adoração das divinas pessoas habitantes de nossas almas.

 

4. Inabitação e sacramentos. Como acabamos de ver, toda alma em estado de graça é templo da Santíssima Trindade e sacrário do Espírito Santo, segundo consta expressamente na divina revelação. (Jo 14, 23; 1Cor 3, 16.) Mas esta inabitação das divinas pessoas se aperfeiçoa e torna mais profundas as raízes ao aumentar na alma o grau de graça santificante, seja qual for a causa que tenha determinado esse aumento. (Tais causas são três: os sacramentos, que aumentam a graça por sua própria virtude intrínseca (ex opere operato); a prática das virtudes infusas, que constituem o mérito sobrenatural (ex opere operantis); e a oração, que pode nos aumentar a graça por sua força impetratória (como esmola gratuita), independentemente do mérito que leva consigo. Já explicamos amplamente tudo isso em nossa Teologia de la perfección cristiana n.284ss, para onde remetemos o leitor que deseje maior informação.)

 

Entre as causas determinantes desse aumento figuram, em primeiro lugar, os sacramentos, que foram instituídos por Jesus Cristo precisamente para nos dar ou aumentar a graça santificante. O batismo e a penitência – para aquele que recebe esta última nas devidas condições depois de ter perdido a graça por causa do pecado mortal – produzem na alma a divina inabitação ao lhe infundir a graça santificante, da qual são inseparáveis. Os demais sacramentos – e também a própria penitência para aquele que a recebe estando já em graça de Deus – produzem um aumento da graça e uma maior radicação ou inserção das divinas pessoas na alma.

 

Com relação ao aumento da graça e ao aperfeiçoamento da inabitação trinitária na alma, interessa destacar, principalmente, a ação da Eucaristia e do sacramento da confirmação.

 

A) A Eucaristia

 

O maior e mais excelente dos sete sacramentos instituídos por Cristo é a Santíssima Eucaristia. Nela não somente recebemos a graça, mas também o próprio Autor da mesma graça, que é o próprio Cristo. Recebemos a água juntamente com a fonte ou manancial de onde ela brota.

 

Mas o que muitos cristãos ignoram é que, juntamente com o Verbo encarnado, recebemos na Eucaristia ao Pai e ao Espírito Santo, porque as três divinas pessoas são absolutamente inseparáveis entre si. Onde está uma delas, estão necessariamente as outras duas, em virtude desse inefável mistério que recebe em teologia o nome de divina circum-incessão. Este mistério consta expressamente na Sagrada Escritura e foi definido pelo magistério oficial da Igreja. 

 

a) A Sagrada Escritura. – O próprio Cristo disse: “Eu e o Pai somos um... o Pai está em mim e eu no Pai. (Jo 10, 30 e 38.) “Quem me vê, vê o Pai... o Pai, que permanece em mim, realiza suas obras. Crede-me: eu estou no Pai e o Pai em mim. (Jo 14, 9-11.) O mesmo deve ser dito, naturalmente, do Espírito Santo.

 

b) O magistério da igreja. – Eis aqui, entre muitos outros textos, as palavras explícitas do concílio de Florença:

 

“Por causa desta unidade, o Pai está todo no Filho, todo no Espírito Santo; o Filho está todo no Pai, todo no Espírito Santo; o Espírito Santo está todo no Pai, todo no Filho. Nenhum precede ao outro na eternidade, ou lhe excede em grandeza, ou lhe sobrepuja em potestade” (D 704).

 

Este mistério, como já dissemos, recebe o nome em teologia de circum-incessão, que equivale aproximadamente à mútua e recíproca inserção das divinas pessoas entre si. Em virtude dela, onde esteja uma pessoa divina estão também necessariamente as outras duas, já que são absolutamente inseparáveis entre si e da mesma essência divina, que é comum às três pessoas. Logo, na Eucaristia, juntamente com a humanidade e a divindade de Cristo (o Filho de Deus), estão também o Pai e o Espírito Santo, embora por distintas razões: o Verbo divino se faz presente na Eucaristia em virtude de sua união hipostática com o corpo e o sangue de Cristo, enquanto que o Pai e o Espírito Santo estão presentes em virtude da circum-incessão intratrinitária.

 

De onde conclui-se que, em cada comunhão eucarística bem recebida, se verifica na alma do justo uma mais penetrante inabitação ou inserção das divinas pessoas. A Eucarística constitui um verdadeiro tesouro para a alma que a recebe dignamente.

 

B) A confirmação

 

O sacramento da confirmação pode ser definido nos seguintes termos: É um sacramento instituído por nosso Senhor Jesus Cristo, no qual, pela imposição das mãos e a unção com o crisma sob a fórmula prescrita, se dá ao batizado a plenitude do Espírito Santo, juntamente com a graça e o caráter sacramental, para robustecer-lhe na fé e confessá-la valentemente, como bom soldado de Cristo.

 

Nesta ampla definição estão reunidos todos os elementos essenciais que nos dão a conhecer a natureza íntima deste grande sacramento, chamado, com razão, o da plenitude do Espírito Santo.

 

A fórmula sacramental que pronuncia o ministro é a seguinte: “Eu te assinalo com a cruz e te confirmo com o crisma da saúde em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”.

 

O Catecismo Romano (p. 2a c.2 n.20.) expõe os efeitos deste sacramento na seguinte forma:

 

O dom próprio da confirmação – além dos efeitos comuns com os demais sacramentos – é aperfeiçoar a graça batismal. Aqueles que se fizeram cristãos pelo batismo são ainda como crianças recém-nascidas, (1Pd 2, 2.) ternos e delicados. Com o sacramento da confirmação se robustecem contra todos os possíveis assaltos da carne, do demônio e do mundo, e sua alma se fortalece na fé para professar e confessar valentemente o nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Daí o nome de confirmação.

 

O sacramento da confirmação equivale a um verdadeiro Pentecostes para cada um dos batizados em Cristo. A semelhança dos apóstolos, cuja debilidade e covardia nas horas da paixão de Cristo se converteu em energia e fortaleza sobre-humanas quando descendeu sobre eles o fogo de Pentecostes, o cristão que recebe o sacramento da confirmação sente robustecidas suas forças espirituais, sobretudo em relação à proclamação e defesa pública da fé que recebeu no batismo.

 

O Sacramento da confirmação – escreve a propósito disto o P. Philipon – perpetua na Igreja todos os benefícios de Pentecostes. Os efeitos do batismo são maravilhosamente sobrepassados. O Espírito Santo, já em posse da alma cristã, a preenche esta vez com suas graças superabundantes, com a plenitude de seus Dons. Com razão se atribui a Ele o triunfo moral dos virgens e dos mártires. É o Espírito de Deus que forma a alma dos santos. Desta presença pessoal e misteriosa do Espírito Santo procedem na alma esses avisos secretos, esses incessantes convites, essas contínuas moções do Espírito, sem as quais ninguém pode se alistar, nem permanecer nos caminhos da salvação, muito menos avançar no caminho da perfeição.

 

Pelo contrário, pelo jogo e funcionamento dos dons do Espírito Santo, o justo, que vive já a vida da graça desde seu batismo, se eleva até a perfeição. Graças a eles, a alma, dócil às menores inspirações divinas, avança com rapidez na vida de fé, de esperança, de caridade e na prática de todas as virtudes. Sua vida espiritual encontra sua plena expansão e desenvolvimento. Esses dons do Espírito Santo operam nela com tanta eficácia, que a conduzem até aos mais altos cumes da santidade.

 

O sacramento da confirmação imprime um caráter ou marca indelével na alma de quem o recebe validamente (ainda que o receba em pecado mortal, já que o caráter é separável da graça), em virtude do qual o cristão se faz soldado de Cristo e recebe o poder de confessar oficialmente – ex officio – a fé de Cristo e de receber as coisas sagradas de uma maneira mais perfeita, juntamente com o direito às graças atuais que durante toda sua vida lhe sejam necessárias para essa confissão e defesa da fé. É, pois, de um preço e valor inestimáveis. Mas precisamente por sua excelsa grandeza, o sacramento da confirmação leva consigo grandes exigências e responsabilidades. Eis aqui algumas das mais importantes:

 

a) Obriga a adquirir uma boa cultura religiosa, como condição indispensável para a defesa da fé contra todos seus inimigos.

 

b) Obriga a desprezar o chamado respeito humano, incompatível com o ardor e a valentia com que o soldado de Cristo há de proclamar publicamente sua fé.

 

c) Nos impulsiona ao apostolado em todas suas formas, principalmente em nosso próprio ambiente e circunstâncias especiais de nossa vida.

 

d) Nos obriga a uma contínua atenção às inspirações internas do Espírito Santo e a uma refinada fidelidade para com a graça. A quem muito foi dado, muito será exigido.

 

Fonte: Fr. Antonio Royo Marín - O Grande desconhecido.