O GRANDE
DESCONHECIDO
Ação do Espírito Santo na alma
É claro que o Espírito Santo não mora em nossa alma de uma maneira passiva e inoperante, senão para desdobrar nela uma atividade vivíssima, orientada a aperfeiçoá-la de grau em grau e conduzi-la, se ela não colocar obstáculos a sua divina ação, até os cumes mais elevados da união com Deus, em que consiste a santidade.
Como já indicamos, juntamente com a graça santificante, as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo nos são infundidos na alma e que ambos constituem o elemento dinâmico e operativo de nosso organismo sobrenatural. São hábitos sobrenaturais que o Espírito Santo infunde e nossas almas juntamente com a graça santificante para nos capacitar a produzir atos sobrenaturais próprios de nossa condição de filhos de Deus. Sem eles não poderíamos realizar esses atos sobrenaturais, mesmo estando em possessão da graça santificante, já que esta – como já vimos – é um hábito sobrenatural entitativo, não operativo, que reside na essência mesma de nossa alma para a divinizar, mas sem que esteja destinada à ação.
Para realizar atos sobrenaturais de maneira conatural a nossa filiação divina necessitamos dos correspondentes hábitos sobrenaturais operativos, que informem as potências de nossa alma, elevando-as ao plano sobrenatural e capacitando-as para produzir aqueles atos sobrenaturais. Estes hábitos sobrenaturais operativos são as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo.
Ambos são movidos pelo Espírito Santo – embora de modo muito distinto, como veremos em seguida – na empresa sublime da santificação dos filhos de Deus.
I. As virtudes infusas
Exporemos brevemente sua natureza, existência, divisão fundamental e de que modo atuam em cada caso sob a moção do Espírito Santo.
1. Natureza. – As virtudes infusas são hábitos operativos infundidos por Deus nas potências da alma para dispô-las a operar sobrenaturalmente segundo o ditame da razão iluminada pela fé.
Sua existência e necessidade se desprendem da própria natureza da graça santificante. Semente de Deus, a graça é um gérmen divino que pede, por si mesma, crescimento e desenvolvimento até alcançar sua perfeição. Mas como a graça não é por si mesma operativa – embora o seja radicalmente, como princípio remoto de todas nossas operações sobrenaturais -, segue-se que, naturalmente, exige e postula alguns princípios imediatos de operação que fluam de sua própria essência e lhe sejam inseparáveis.
Do contrário, o homem estaria elevado à ordem sobrenatural somente no fundo de sua alma, mas não em suas potências ou faculdades operativas. E embora, absolutamente, Deus poderia elevar nossas operações à ordem sobrenatural mediante graças atuais contínuas, se produziria, não obstante, uma verdadeira violência na psicologia humana pela tremenda desproporção entre a pura potência natural e o ato sobrenatural a realizar. Ora, esta violência não pode se conciliar com a suavidade da Providência divina, que move a todos os seres em harmonia e de acordo com sua própria natureza. A infusão desses princípios operativos sobrenaturais – virtudes infusas – evita este sério inconveniente, fazendo que o homem possa tender ao fim sobrenatural de uma maneira perfeitamente conatural, com suavidade e sem violências, sob a moção divina de uma graça atual inteiramente proporcionada a esses hábitos infusos.
2. Existência. – A existência das virtudes infusas – sobretudo das teologais, que são as mais importantes – consta expressamente na Sagrada Escritura (1Cor 13,13; 2Pd 1,5-7; Rm 8,5-6; 8,15; 1Cor 2,14; Tg 1,5, etc.) e foi proclamada reiteradamente pelo magistério oficial da Igreja.
3. Divisão. – As virtudes infusas se dividem em dois grupos fundamentais. O primeiro dispõe as potências da alma em relação ao fim sobrenatural: são as três virtudes teologais (fé, esperança e caridade). O segundo dispõe as mesmas potências em relação aos meios para alcançar aquele fim: são as quatro cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança), com todo o cortejo de suas virtudes anexas ou derivadas. No total são mais de cinquenta reunidas por São Tomás em sua maravilhosa Suma Teológica. Com elas todas as potências e energias do homem são elevadas à ordem da graça. Em cada potência e com relação a cada objeto especificamente distinto, há um hábito sobrenatural que dispõe o homem a operar em conformidade ao princípio da graça e desenvolver com essa operação a vida sobrenatural.
4. Como atuam. – Este é um ponto importante para determinar com toda a precisão e exatidão a ação do Espírito Santo em nossa própria santificação.
Para que uma virtude infusa possa passar ao ato (ou seja, para que possa realizar a ação virtuosa correspondente), é absolutamente necessária a previa moção de uma graça atual procedente de Deus.
Com efeito: é absolutamente impossível que o esforço puramente natural da alma possa pôr em exercício os hábitos infusos, uma vez que a ordem natural não pode determinar as operações do sobrenatural: há uma abismo insondável entre os dois, pertencem a dois planos inteiramente distintos, dos quais o sobrenatural rebaixa e transcende infinitamente todo o plano natural. Nem tampouco é possível que esses hábitos infusos possam atuar por si mesmos, porque um hábito qualquer nunca pode atuar senão em virtude e por ação do agente que o causou; e, tratando-se de hábitos infusos, só Deus, que os produziu, pode pô-los em movimento.
Se impõe, pois, a ação de Deus com a mesma necessidade absoluta com que se exige em metafísica a influência de um ser em ato para que uma potência qualquer possa produzir o seu. Falando em termos absolutos, Deus poderia desenvolver e aperfeiçoar a graça santificante, infundida na essência mesma de nossa alma, à base unicamente de graças atuais, sem infundir nas potências nenhum hábito sobrenatural operativo. (Embora tenhamos dito que isto seria antinatural e violento. Falamos agora unicamente da potência absoluta de Deus, não do que de fato realizou em nossas almas.) Porém em troca, não poderia desenvolvê-la sem as graças atuais mesmo dotando-nos de toda classe de hábitos operativos infusos, já que esses hábitos não poderiam jamais passar ao ato sem a prévia moção divina, que na ordem sobrenatural não é outra coisa senão a graça atual.
Todo ato de uma virtude infusa qualquer e toda atuação dos dons do Espírito Santo supõem, por conseguinte, uma prévia graça atual que colocou em movimento essa virtude ou esse dom. ((Embora, desde logo, nem toda graça atual produz necessária ou infalivelmente um ato de virtude. Pode se tratar de uma graça suficiente à qual o homem tenha querido resistir (p.ex., o pecador que sente em seu interior uma inspiração divina, um remorso, etc. e os ignora completamente)) Precisamente a graça atual não é outra coisa senão o influxo divino que moveu esse hábito infuso à operação.
De que maneira move o Espírito Santo o hábito de uma virtude infusa? Com que classe de moção? É a mesma moção com a qual move o hábito dos dons, ou se trata de uma moção completamente distinta?
De momento vamos adiantar que a moção do Espírito Santo com relação às virtudes infusas é completamente distinta da que move o hábito dos dons do próprio Espírito Santo. Às virtudes infusas as move com o impulso de uma graça atual ao modo humano (embora de ordem estritamente sobrenatural, como é óbvio, pois se trata de mover um hábito sobrenatural também), enquanto que a seus próprios dons os move o Espírito Santo com uma graça atual ao modo divino ou sobre-humano. O resultado é, naturalmente, que os atos procedentes dos dons do Espírito Santo são incomparavelmente mais perfeitos do que os procedentes das virtudes infusas. Aos explicar a natureza da divina moção donal, precisaremos com mais detalhes esta diferença fundamental com a moção das virtudes infusas, para deixar explícita a importância e necessidade dos dons do Espírito Santo em relação ao pleno desenvolvimento da vida cristã em sua ascensão à santidade.
II. Os dons do Espírito Santo
Dada a grande importância dos dons do Espírito Santo em uma obra toda dedicada à terceira pessoa da Santíssima Trindade, vamos estudá-los com a máxima amplitude que nos permite.
1. Os dons de Deus
O primeiro grande dom de Deus é o próprio Espírito Santo, que é o amor mesmo com que Deus se ama e nos ama. D’Ele disse a liturgia da Igreja que é o dom de Deus Altíssimo: Altissimi donum Dei. O Espírito Santo é o primeiro dom de Deus, não só enquanto que é o Amor infinito no seio da Trindade Beatíssima, mas também enquanto está em nós por missão ou envio.
Deste primeiro grande dom procedem todos os demais dons de Deus, já que, em última análise, tudo quanto Deus dá às criaturas, tanto na ordem sobrenatural como na própria ordem natural, não são senão efeitos totalmente gratuitos de seu libérrimo e infinito amor.
Em sentido amplo, por conseguinte, tudo quanto recebemos de Deus são “dons do Espírito Santo”. Porém em sentido próprio e estrito, recebem esse nome certos hábitos sobrenaturais infundidos por Deus nas almas juntamente com a graça santificante e as virtudes infusas, para sua plena santificação. É neste sentido estrito que os tomamos aqui.
2. Existência
A existência dos dons do Espírito Santo tem seu fundamento remoto na própria Sagrada Escritura. É clássico o texto de Isaías (11,1-3): Um renovo sairá do tronco de Jessé, e um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele repousará o Espírito do Senhor, Espírito de sabedoria e de entendimento, Espírito de prudência e de coragem, Espírito de ciência e de temor ao Senhor. (Sua alegria se encontrará no temor ao Senhor.) Ele não julgará pelas aparências, e não decidirá pelo que ouvir dizer.
Este texto é claramente messiânico e propriamente fala apenas do Messias. Mas, não obstante, os Santos Padres e a própria Igreja o estendem também aos fiéis de Cristo em virtude do princípio universal da economia da graça que enuncia São Paulo, quando disse: “Os que ele distinguiu de antemão, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que este seja o primogênito entre uma multidão de irmãos”.(Rm 8, 29.) De onde se infere que tudo quanto há de perfeição em Cristo, nossa Cabeça, se é comunicável, se encontra também em seus membros unidos a Ele pela graça.
E é evidente que os dons do Espírito Santo pertencem às perfeições sobrenaturais comunicáveis, tendo em conta, ademais, a necessidade que temos deles, como veremos em seguida. Portanto, como a graça nas coisas necessárias é tão pródiga, pelo menos, como a natureza mesma, há que se concluir retamente que os sete espíritos que o profeta viu descansar sobre Cristo são também patrimônio de todos quantos permaneçam unidos a Ele pela caridade.
Os Santos Padres, tanto gregos quanto latinos, falam com frequência dos dons do Espírito Santo, apoiando-se, em geral, no texto de Isaías e o aplicam a Cristo e a cada um dos cristãos em estado de graça. Entre os Padres gregos se destacam São Justino, Origines, São Cirilo de Alexandria, São Gregório Nazianzeno e Dídimo o Cego, de Alexandria. Entre os Latinos leva a primazia Santo Agostinho, seguido por São Gregório Magno; mas também se encontram coisas muito boas sobre os dons em São Vitorino, Santo Hilário, Santo Ambrósio e São Jerônimo.
A Igreja falou expressamente deles no sínodo romano celebrado no ano 382 sob o papa São Dâmaso (cf. D 83). Alude repetidas vezes a eles na liturgia de Pentecostes (hino Veni, Creator, na seqüência Veni, Sancte Spiritus da missa, etc.) e na solene administração do sacramento da confirmação. O imortal pontífice Leão XIII expôs magnificamente a doutrina dos dons em sua encíclica Divinum illud múnus, dedicada integralmente ao Espírito Santo.
O testemunho de toda a tradição, apoiado com sólido fundamento na Sagrada Escritura, leva a uma certeza absoluta sobre a existência dos dons do Espírito Santo em todos os fiéis em graça. E não faltam teólogos de grande autoridade que consideram esta existência como uma verdade de fé, em virtude do magistério ordinário e universal da Igreja.
3. Número dos dons
Esta é uma questão de importância secundária. No texto massorético de Isaías que citamos mais acima, se enumeram unicamente seis dons, repetindo ao final o dom de temor. Mas na versão bíblica dos Setenta, assim como na Vulgata Latina, se enumeram sete, acrescentando o dom de piedade aos seis do texto massorético. A divergência aparente entre ambas versões procede da dupla tradução que admite a palavra hebréia yira’t (“temor”), que pode ser traduzida também por piedade.
Em todo caso, como é sabido, é muito frequente na Bíblia empregar o número sete para significar uma plenitude indeterminada, sem que tenha que se reduzir precisamente ao número concreto de sete. Santo Ambrosio e Santo Agostinho insistem que o número sete tem aqui um valor de plenitude; ou seja, todo o acúmulo de dons desejáveis habitavam no Messias.
De todas as formas, seria temerário e sem valor objetivo algum lançar-se a improvisar outros nomes distintos dos sete que nos transmitiu unanimemente a tradição. Só com base neles se pode constituir seriamente a teologia dos dons, e assim o fizeram efetivamente os Santos Padres e os teólogos de todas as escolas. Também nós nos ateremos a eles.
4. Natureza
Mais que o número dos dons, interessa-nos conhecer sua natureza íntima. Ela se nos dará a conhecer pela seguinte definição teológica: Os dons do Espírito Santo são hábitos sobrenaturais infundidos por Deus nas potências da alma para receber e auxiliar com facilidade as moções do próprio Espírito Santo ao modo divino e sobre-humano.
Vamos explicar a definição palavra por palavra.
a) São hábitos sobrenaturais. – O famoso texto de Isaias nos diz que os dons repousarão sobre o Messias, o que significa que permanecerão n’Ele de uma maneira constante, habitual. Logo, se conferem analogamente aos membros de Cristo também de modo permanente ou habitual. A própria fé nos mostra a presença permanente do Espírito Santo em toda alma em estado de graça, (1Cor 6,19.) e o Espírito Santo não está nunca sem seus dons.
b) Infundidos por Deus. – É algo claro e evidente se temos em conta que se trata de realidades sobrenaturais, que a alma não poderia adquirir jamais por suas próprias forças, já que transcendem infinitamente toda a ordem puramente natural.
c) Nas potências da alma. – São o sujeito onde residem, assim como as virtudes infusas, cujo ato sobrenatural aperfeiçoa os dons, dando-lhes a modalidade divina ou sobre-humana própria deles, como veremos em seguida.
d) Para receber e auxiliar com facilidade. – Isso é próprio e característico dos hábitos, que aperfeiçoam as potências precisamente para receber e auxiliar com facilidade a moção do agente que os move.
e) As moções do próprio espírito santo. – Que é quem os move e atua direta e imediatamente como causa motora e principal, diferentemente das virtudes infusas, que são movidas ou atuadas pelo mesmo homem como causa motora e principal, embora sempre sob a prévia moção de uma graça atual.
f) Ao modo divino ou sobre-humano. – Esta é a principal diferença entre a moção ordinária da graça atual, movendo as virtudes infusas ao modo humano, e a moção divina, que põe em ato os dons do Espírito Santo ao modo divino ou sobre-humano. Vamos explicar este ponto interessantíssimo.
5. A moção divina dos dons
A moção divina dos dons é muito distinta da moção divina que põe em marcha as virtudes infusas. Na moção divina das virtudes, Deus atua como causa principal primeira, mas ao homem lhe corresponde a plena responsabilidade da ação como causa principal segunda, inteiramente subordinada à primeira. Por isso os atos das virtudes são totalmente nossos, pois partem de nós mesmos, de nossa razão e de nosso livre arbítrio, embora sempre, desde logo, sob a moção de Deus como causa primeira, sem a qual nenhum ser em potência pode passar ao ato tanto na ordem natural quanto na sobrenatural.
Porém no caso dos dons, a moção divina que os coloca em marcha é muito distinta: Deus atua, não como causa principal primeira – como ocorre com as virtudes –, mas como causa principal única, e o homem deixa de ser causa principal segunda, passando à categoria de simples causa instrumental do efeito que o Espírito Santo produzirá na alma como causa principal única. Por isso os atos procedentes dos dons são materialmente humanos, embora formalmente divinos, de maneira semelhante à melodia que um artista arranca de sua harpa, que é materialmente da harpa, mas formalmente do artista que a maneja. E isso não diminui em nada o mérito da alma que produz instrumentalmente esse ato divino auxiliando docilmente a divina moção, já que não atua como um instrumento morto ou inerte – como a plaina do carpinteiro ou a pluma do escritor –, senão como um instrumento vivo e consciente que se adere com toda a força de seu livre arbítrio à moção divina, deixando-se conduzir por ela e auxiliando-a plenamente.
(O diz expressamente São Tomás ao contestar a uma objeção sobre a necessidade dos dons como hábitos. Eis aqui a objeção e sua resposta: – Objeção: “Os dons do Espírito Santo aperfeiçoam o homem, levando-o pelo Espírito de Deus, como já se disse. Ora, levado por esse Espírito, o homem desempenha o papel de instrumento em relação a ele. Ora, não é próprio do instrumento ser aperfeiçoado por um hábito, senão o agente principal. Logo, os dons do Espírito Santo não são hábitos.” – Resposta: “A objeção procede quanto ao instrumento, que não age, mas é somente passivo. Ora, o homem não é tal instrumento, pois, dotado de livre arbítrio, também assim age quando levado pelo Espírito Santo. Logo, precisa de um hábito.” (I-II q.68 a.3 ad.2). São Tomás repete esta mesma doutrina em muitos outros lugares. Ver por exemplo, com respeito à humanidade de Cristo, instrumento do Verbo divino, que se movia, no entanto, por vontade própria, auxiliando a ação do Verbo (III p.18 a.1 ad 2).)
A passividade da alma sob a moção divina dos dons é somente relativa, ou seja, somente com respeito à iniciativa do ato, que corresponde única e exclusivamente ao Espírito Santo; porém, uma vez recebida a divina moção, a alma reage ativamente e se associa intensamente a ela com toda força vital de que é capaz e com toda a plenitude de seu livre arbítrio. Dessa maneira se conjugam e completam mutuamente a iniciativa divina, a passividade relativa da alma, a reação vital da mesma, o exercício do livre arbítrio e o mérito sobrenatural da ação.
Assim se explica porque, no exercício das virtudes infusas, a alma se encontra em pleno estado ativo. Seus atos se produzem ao modo humano e têm plena consciência de que é ela quem opera quando e como lhe apraz (p. ex., realizando um ato de humildade, de oração, de obediência, etc., quando quer e como quer). É ela, simplesmente, a causa motora e principal de seus próprios atos, embora sempre, desde logo, sob a moção divina da graça atual ordinária, que nunca falta e sempre está à nossa disposição quando queremos operar virtuosamente, como o ar que respiramos.
O exercício dos dons – como já dissemos – é completamente distinto. O Espírito Santo é a única causa motora e principal que move o hábito dos dons, passando a alma para a categoria de simples instrumento, embora consciente e livre. A alma reage vitalmente ao receber a moção dos dons – e desta maneira se salva a liberdade e o mérito sob a ação donal –, mas somente para auxiliar a moção divina, cuja iniciativa e plena responsabilidade corresponde inteiramente ao próprio Espírito Santo, que atua como única causa motora e principal. Por isso, tanto mais perfeita e limpa resultará a ação donal quanto a alma acerte em auxiliar com maior docilidade essa moção divina, aderindo-se fortemente a ela sem torcê-la nem desviá-la com movimentos de iniciativa humana, que não fariam mais do que entorpecer a ação santificadora do Espírito Santo.
Segue-se daqui que a alma, quando sinta a ação do Espírito Santo, deve reprimir sua própria iniciativa humana, reduzir sua atividade a auxiliar e secundar docilmente à moção divina, permanecendo passiva com relação a ela. Esta passividade – que fique claro – é só com relação ao agente divino; porém, na verdade, se transforma em uma atividade vivíssima por parte da alma, embora única e exclusivamente para secundar a ação divina, sem alterá -la, nem modificá-la com iniciativas humanas. Neste sentido pode e deve se dizer que a alma opera também instrumentalmente o que nela se opera, produz o que nela se produz, executa o que nela o Espírito Santo executa. Se trata, simplesmente, de uma atividade recebida, (“No que concerne aos dons do Espírito Santo, a mente humana não se comporta como motor, mas antes, como movida” (II-II q.52 a.2 ad 1). ) de uma absorção da atividade natural por uma atividade sobrenatural, de uma sublimação das potências a uma ordem divina de operação, que nada absolutamente tem a ver com a estéril inação do quietismo.
6. Necessidade dos dons do espírito santo
Os dons do Espírito Santo são absolutamente necessários para a perfeição das virtudes infusas – ou, o que é o mesmo, para chegar à plena perfeição cristã -, e inclusive para a própria salvação eterna. Vejamos separadamente:
1) os dons do espírito santo são necessários para a perfeição das virtudes infusas. – A razão fundamental é pela grande desproporção entre as virtudes infusas mesmas e o sujeito onde residem: a alma humana.
Com efeito: como é sabido, as virtudes infusas são hábitos sobrenaturais, divinos, e o sujeito no qual se recebem é a alma humana, ou, mais exatamente, suas potências ou faculdades.
Ora, segundo o conhecido aforismo das escolas teológicas “o que se recebe, se recebe ao modo do recipiente”. Como as virtudes infusas, ao serem recebidas nas potências da alma, se rebaixam e se degradam, elas adquirem o nosso modo humano - por sua inevitável acomodação ao funcionamento psicológico natural do homem – e estão como que afogadas nessa atmosfera humana, que é quase irrespirável para elas.
E esta é a razão pela qual as virtudes infusas, apesar de serem muito mais perfeitas que suas correspondentes virtudes adquiridas (que se adquirem pela repetição de atos naturalmente virtuosos), não nos fazem operar com tanta facilidade como estas, principalmente pela imperfeição com que possuímos os hábitos infusos, que são sobrenaturais. Vê-se isso muito claramente em um pecador que se arrepende e confessa depois de uma vida desordenada: volta facilmente a seus pecados apesar de ter recebido com a graça todas as virtudes infusas. Coisa que não ocorre com aquele que, a força de repetir atos virtuosos, chegou a adquirir alguma virtude natural ou adquirida.
Ora, é claro e evidente que, se possuímos imperfeitamente na alma o hábito das virtudes infusas, os atos que provenham dele serão também imperfeitos, a não ser que um agente superior venha a aperfeiçoá-los. E esta é, precisamente, a finalidade dos dons do Espírito Santo. Movidos e regulados, não pela razão humana, como as virtudes, senão pelo próprio Espírito Santo, proporcionam às virtudes infusas – sobretudo às teologais – a atmosfera divina que necessitam para desenvolver toda sua virtualidade sobrenatural. (Cf. I-II q.68 a.2. Esta é a razão da perfeita inutilidade de uma operação dos dons ao modo humano, supondo que fosse possível. Não resolveria absolutamente nada no que concerne à perfeição das virtudes. Continuaria a mesma imperfeição da modalidade humana.)
De maneira que a imperfeição das virtudes infusas não está nelas mesmas – são perfeitíssimas em si mesmas –, senão no modo imperfeito com que nós as possuímos, por causa de sua própria imperfeição humana, que lhes imprime ferozmente o modo humano da simples razão natural iluminada pela fé. Daí a necessidade de que os dons do Espírito Santo venham em auxílio das virtudes infusas, dispondo as potências da alma para serem movidas por uma agente superior – o Espírito Santo mesmo –, que as fará atuar de um modo divino, ou seja, de um modo totalmente proporcionado ao objeto perfeitíssimo das virtudes infusas. Sob a ação dos dons, as virtudes infusas se encontram, por assim dizer, em seu próprio ambiente.
De onde se conclui que, sem a atuação frequente e dominante dos dons do Espírito Santo movendo ao modo divino as virtudes infusas, jamais poderão alcançar estas sua plena expansão e desenvolvimento, por mais que multipliquem e intensifiquem seus atos ao modo humano. Sem o regime predominante dos dons do Espírito Santo é impossível chegar à perfeição cristã.
2) Os dons do espírito santo são necessários, em certo sentido, inclusive para a salvação. – Para eliminar toda a dúvida, basta ter em conta a corrupção da natureza humana como consequência do pecado original com o qual todos viemos ao mundo. As virtudes não residem em uma natureza sã, mas em uma natureza mal inclinada para o pecado. E ainda que as virtudes infusas, enquanto depende delas, têm força suficiente para vencer todas as tentações que se oponham, não podem, de fato, sem a ajuda dos dons, vencer as tentações graves que podem sobrevir inesperadamente e de súbito em um momento dado.
Nestas situações imprevistas, nas quais a queda no pecado ou a resistência é uma questão de instante, não pode o homem lançar mão do discurso lento e trabalhoso da razão, mas é preciso que se mova rapidamente, como por instinto sobrenatural, isto é, sob a moção dos dons do Espírito Santo, que nos proporcionam, precisamente, essa espécie de instinto do divino. Sem essa moção dos dons, a queda no pecado seria quase segura, dada a inclinação viciosa da natureza humana, ferida pela culpa original.
Claro que estas situações tão difíceis e embaraçosas não são frequentes na vida do homem. Porém é suficiente que possam se produzir alguma vez para concluir que, ao menos nessas ocasiões, a atuação dos dons se faz necessária mesmo para a própria salvação eterna.
7. O modo deiforme dos dons do Espírito Santo
Como já explicamos mais acima, a característica mais importante e fundamental dos dons do Espírito Santo é sua atuação ao modo divino ou sobre-humano, ou seja, a modalidade divina que imprimem aos atos das virtudes infusas quando são aperfeiçoadas pelos dons do Espírito Santo. Dada a importância excepcional desta doutrina na teologia dos dons, oferecemos na continuação umas palavras do padre Philipon explicando admiravelmente estas ideias: (P. Philipon, O. P., Los dones del Espírito Santo (Barcelona 1966) p. 149-151.)
A propriedade mais fundamental dos dons do Espírito Santo é seu modo deiforme: seus atos emanam de nós, mas sob a inspiração divina. Deus é sua regra e sua medida, seu motor especial.
Com efeito, os atos humanos podem ter uma tripla medida:
1. Uma medida humana, que imprime a toda nossa vida moral a regulação da razão. É o caso das virtudes naturais ou adquiridas.
2. Uma medida humano-divina na ordem da graça santificante, que vem a sobrelevar em sua essência toda nossa atividade virtuosa para fazê-la participar na vida do pensamento, de amor e de ação de Deus trino mediante as virtudes cristãs (infusas), mas deixando ainda ao homem seu modo de operar conatural (ou seja, o modo humano), segundo as deliberações de sua razão discursiva e as bem fundamentadas inclinações de sua vontade. É o regime comum das virtudes teologais e morais (infusas) quando o homem, divinizado pela graça de adoção, realiza atos voluntários que, em substância, pertencem à ordem sobrenatural, mas cuja maneira de se realizar segue sendo humana.
3. Há, finalmente, um regime superior de vida virtuosa, deiforme não só em sua substância, senão também em seu modo, no qual os atos têm a medida divina do Espírito de Deus, que é seu Motor e sua Regra especificadora. Este é o caso dos dons do Espírito Santo. Deus não somente é a causa eficiente desses atos. Ele toma a iniciativa dos mesmos, os inspira, os realiza a sua medida divina, participada em graus diversos pelo homem, convertido em filho de Deus pela graça e dirigido por seu Espírito. Este operar deiforme reveste então a maneira de pensar, amar, querer e operar do Espírito de Deus, na proporção possível ao homem, sem sair de suas condições de espírito encarnado... O homem a quem anima o sopro do Espírito está como que arrebatado e sustentado pelas asas velozes de uma águia todo-poderosa.
Este operar deiforme reveste a maneira de pensar, de amar, de querer e de obrar própria do Espírito Santo de Deus. A vida espiritual do homem vem a converter-se como uma projeção nele dos costumes da Trindade, em cujo seio entra a imitação do Filho único do Pai, não sendo mais do que um com Ele, misticamente, na unidade de uma mesma pessoa, transformando-se o cristão em “outro Cristo” que caminha pela terra, identificado com todos os sentimentos do Verbo encarnado, glorificador do Pai e Salvador dos homens.
O cristão avança assim pela vida, iluminado em sua inteligência pela claridade do Verbo, com sua vida de amor ao ritmo do Espírito Santo, atuando em toda sua conduta interior e exterior segundo o modelo da atividade “ad extra” das três pessoas divinas na indivisível unidade de sua essência. O Espírito de Deus se faz não só inspirador e motor, mas também regra, forma e vida desta atividade ao modo deiforme e cristiforme própria do cristão, cada vez mais revestido pela fé, pelo amor e pela prática, de todas as virtudes da santidade de Cristo.
Nos diversos tratados dos dons do Espírito Santo não se insiste o bastante em que, dentro da ordem concreta da economia da salvação, a atividade dos dons se realiza em nós já não somente de um modo deiforme, mas também de modo cristiforme, que nos configura com o Filho único do Pai. Crer é ver tudo com o olhar de Cristo. Esperamos tudo da onipotente e misericordiosa Trindade, mas em virtude dos méritos de Cristo. Nossa vida de amor a Deus, nosso Pai, e aos homens, nossos irmãos, se expande em nossa amizade com todos na pessoa de Cristo. E igualmente sucede com as demais virtudes e com os demais dons do Espírito Santo. Toda nossa vida espiritual se desenvolve em nós, segundo a expressão de São Paulo, “em Cristo Jesus”.
O exemplar trinitário é a regra suprema da atividade deiforme dos dons. Animado pelo Espírito Santo em cada um de seus atos, o cristão deveria passar pela terra à maneira de um Deus encarnado”.
III. Os frutos do Espírito Santo
Quando a alma corresponde docilmente à moção interior do Espírito Santo, produz atos excelentes de virtude que podem ser comparados aos frutos sazonados de uma árvore. Nem todos os atos procedentes da graça podem ser considerados frutos, senão unicamente os mais sazonados e excelentes, que levam consigo grande suavidade e doçura. São simplesmente os atos procedentes dos dons do Espírito Santo. (Embora não procedam exclusivamente. Eles podem proceder também das virtudes. Segundo São Tomás, são frutos do Espírito Santo todos aqueles atos virtuosos nos quais a alma encontra consolação espiritual (cf. I-II q.70 a.2).)
Se distinguem dos dons como o fruto se distingue do ramo e o efeito da causa. E se distinguem também das bem-aventuranças evangélicas – das quais falaremos em seguida – nos graus de perfeição; estas últimas são mais perfeitas e acabadas do que os frutos. Por isso todas as bem-aventuranças são frutos, mas nem todos os frutos são bem-aventuranças.
Os frutos são completamente contrários às obras da carne, já que esta tende aos bens sensíveis, que são inferiores ao homem, enquanto que o Espírito Santo nos move ao que está acima de nós.
Quanto ao número dos frutos, a Vulgata enumera dozes: caridade, gozo espiritual, paz, paciência, benignidade, bondade, longanimidade, mansidão, fé, modéstia, continência e castidade.(Gl 5,22-23.) Porém no texto paulino original, só são citados nove: caridade, gozo, paz, longanimidade, afabilidade, bondade, fé, mansidão, temperança. É porque – como disse muito bem São Tomás, de acordo com Santo Agostinho – o Apóstolo não teve intenção de enumerá-los todos, mas se limitou a citar alguns por via de exemplo; porém, na realidade são ou podem ser muitos mais, já que se trata de atos, não de hábitos, como os dons.
IV. As bem-aventuranças evangélicas
Mais perfeita ainda que os frutos são as bem-aventuranças evangélicas. Elas assinalam o ponto culminante e o coroamento definitivo – aqui na terra – de toda a vida cristã. Tal como os frutos, as bem-aventuranças não são hábitos, mas atos. Como os frutos, também procedem das virtudes e dos dons, mas são tão perfeitos que deve-se atribuí-los aos dons, mais do que às virtudes. Por causa das esplêndidas recompensas que as acompanham, são já nesta vida como que uma antecipação da bem-aventurança eterna.
No sermão da Montanha, nosso Senhor as reduz a oito: pobreza de espírito, mansidão, lágrimas, fome e sede de justiça, misericórdia, pureza de coração, paz e perseguição por causa da justiça. (Mt 5, 3-10.) Mas também podemos dizer que se trata de um número simbólico que não reconhece limites.
Vejamos agora, a correspondência entre as virtudes infusas, os dons do Espírito Santo e as bem-aventuranças evangélicas, tal como a estabelece Santo Tomás:
Virtudes, Dons e Bem-aventuranças:
Teologais (em relação ao fim): Caridade, Fé e Esperança. Dons: Sabedoria, Entendimento, Ciência e Temor. Bem aventuranças: Os pacíficos, Os limpos de coração, Os que choram, Os Pobres de espírito.
Morais (em relação aos meios) Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança. Dons: Conselho, Piedade, Fortaleza e Temor. Bem Aventuranças: Os misericordiosos, Os mansos, Fome e sede e Pobres de espírito.
Na relação anterior não consta a oitava bem-aventurança (perseguição por causa da justiça), porque, sendo a mais perfeita de todas, contém e abarca todas as demais em meio aos maiores obstáculos e dificuldades.
Fonte: Fr. Antonio Royo Marín - O Grande desconhecido.